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Das evidências como estratégia de desresponsabilização política

A actual equipa ministerial tem vindo a confrontar o país com um conjunto de dados preocupantes sobre o estado da educação escolar em Portugal. Dizem-nos que os milhões de euros gastos na formação contínua de educadores e de professores foram deitados ao lixo. Dizem-nos, também, que as equipas de apoio educativo foram reduzidas à expressão mais simples por força quer dos resultados medíocres obtidos quer dos equívocos estratégicos que essas mesmas equipas teriam cometido no domínio da inclusão de crianças com necessidades educativas especiais. Dizem-nos, finalmente e entre outras coisas, que as turmas nalgumas escolas públicas são formadas a dedo e de forma pouco transparente para responderem a clientelas privilegiadas, nomeadamente as dos filhos dos professores. Estas são algumas das acusações que publicamente a ministra da educação ou os seus secretários de estado têm vindo a divulgar, tanto para adquirirem respeitabilidade política e credibilidade junto da opinião pública e publicada, como para se viabilizar, por fim, o conjunto de intenções políticas que a proposta do Regime Legal da Carreira do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e dos Ensinos Básico e Secundário, da autoria do M.E., deixa adivinhar. Trata-se de uma estratégia que importa problematizar quer quanto aos seus pressupostos quer quanto às suas implicações, quanto mais não seja porque os argumentos invocados tendem a configurar uma acção governativa paradoxal. Isto é, deparamo-nos com argumentos que tendem a neutralizar a reacção daqueles que reivindicam a sua pertença ao campo da educação democrática, com o objectivo de legitimar o processo de proletarização da profissão docente, o que acaba por ser, afinal, um desígnio contrário a qualquer iniciativa de política educativa sujeita a propósitos de carácter democrático.
Será que a ministra mente? Não. A professora Maria de Lurdes Rodrigues não mente, limita-se a manipular evidências para construir uma estratégia de desresponsabilização política que assenta na crença em função da qual se defende que os problemas mais graves que afectam o nosso sistema educativo devem ser imputados à acção negligente ou incompetente das professoras e dos professores portugueses. A haver negligência ou incompetência da parte destes, importa perguntar, no entanto, se a função de um Ministério da Educação é andar a berrá-lo na praça pública ou se é, antes, a de tomar um conjunto de medidas que permita combater essa negligência e essa incompetência, sabendo-se que há muitos justos a pagar por muitos pecadores e sabendo-se, igualmente, que não se pode deixar de fora da discussão a negligência e a incompetência específicas deste e de outros ministérios, quanto mais não seja para se que se possa compreender até que ponto a putativa negligência e incompetência dos primeiros não foi incentivada ou, pelo menos, não foi consentida pela negligência e a incompetência dos segundos. Não sendo esta uma reflexão lucrativa para esta ministra da Educação, seria, certamente, uma reflexão lucrativa para o país. Uma reflexão que permitiria discutir assuntos tão pertinentes como os dispositivos de regulação da acção docente, os mecanismos de progressão na carreira ou os conteúdos funcionais da profissão que não sirva, apenas, para justificar a criação de um sistema de castas profissionais, uma proposta de avaliação de desempenho subordinado a este propósito ou uma concepção indiferenciada da profissão que, no seu conjunto, conduzirá, inevitavelmente, a agravar o processo de decadência pedagógica e educativa das nossas escolas públicas. Uma reflexão que depende de obras prudentes, mais do que de discursos fogosos, que depende de coragem política, mais do que de credibilidade mediática, que depende de ideias fundamentadas, mais do que estereótipos e preconceitos, que depende mais de estudos criteriosos e responsáveis, do que de evidências sedutoras, até porque, como no-lo recordou António Nóvoa (2005), acontece que, demasiadas vezes, aquilo que é evidente...mente(1).

1) NÓVOA, António (2005). Evidentemente. Porto: Edições ASA.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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