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A humanidade caminha muitas vezes para o abismo sabendo sempre evitá-lo

«Lástima é que para escolher um melão se façam mais provas e diligências da sua bondade que para escolher um conselheiro para ministro»

(Dom Francisco Manuel de Melo, 1721)

Passou mais um ano. Doze longos meses. Os que viveram toda a vida ao toque da campainha da escola, primeiro como alunos e depois como professores, aprenderam desde sempre a fazer do Verão o termo de um ciclo de vida.
Noutras épocas o tempo teve outras marcas de divisão. Tivemos o tempo de semear, de cuidar de plantas e animais, de colher. E cada acto era marcado por ritos e festas. Os sinais que então dividiam o tempo eram outros. O variado cheiro da terra ao longo do ano, as variadas cores do tempo, os cheiros variados da fruta. Um tempo em que os meses se distinguiam pelos frutos que apareciam sobre a mesa. Agora já não é assim. As cerejas já não nos fazem lembrar a pressa de começar a estudar para exames e estes já não estão associados ao cheiro a pêssego.
Os que viveram o mundo agrário acostumaram-se a fazer avaliações e balanços no fim de cada ciclo de trabalho e de vida. Ponderar o resultado das sementeiras. Angustiar-se com a abundância ou a falta de chuva. Alegrar-se ou entristecer-se com as colheitas eram práticas da vida. Agora o tempo é outro e outras as ocupações e preocupações, mas seria bom que soubéssemos reencontrar esta prática de reflectir sobre o que fazemos e sobre o que conseguimos ou não obtivemos.
Este seria o momento de avaliar e de fazer o balanço do ano lectivo que findou. A avaliação e a reflexão sobre a nossa prática e o nosso local de trabalho são actos que exigem calma, serenidade, distanciamento, isenção, ponderação. Mas o tempo que vivemos não é propício a tais exigências. Nesta antecâmara das férias o ar que respiramos, quer a nível nacional quer internacional, não é de paz, de serenidade, mas de guerra.
Durante o ano, o ambiente geral do país pautou-se por muita agressividade, ameaças, maledicência, desconsideração. Tudo se fazendo para criar a ideia do caos  que levasse a aceitar a nova ordem social. O resultado é que cada português passou a ver no outro um crápula, um falcatrueiro, um privilegiado, um açambarcador, um malandro, um incompetente, um patife a merecer ser metido na ordem por quem governa. E cada um se vê a si próprio como um honrado e esforçado patriota roubado por todos os outros.
Este discurso catastrófico não é original nosso. Diz a lei da química que «nada se cria, nada se perde, tudo se transforma». Pode dizer a lei portuguesa que «nada se cria, tudo se copia, tudo se importa».
Desde finais dos anos oitenta e, sobretudo, após a queda do muro de Berlim, que assistimos ao triunfo do que alguém chamou o pensamento TINA (There Is No Alternative).  Pensamento único divulgado em todo o mundo por técnicos do marketing político, jornalistas, tecnocratas e intelectuais ao serviço dos conglomerados financeiros e militares. Uma ideia que, convencendo os incautos cidadãos de que só há um caminho para as sociedades, manipula os cidadãos e coloca-os ao serviço dos interesses da cada vez mais  restrita e mais poderosa classe dominante.
Desconhecemos o futuro, mas tudo indica que o capitalismo terá chegado a um dos patamares mais altos da sua dominação. Não um capitalismo alargado, mas cada vez mais poderoso e concentrado. O mundo é cada vez mais bipolar. À volta de um pólo congrega-se um número cada vez mais restrito de poderosos e à volta do outro aglomera-se a generalidade da população cada vez mais empobrecida. Volta a prefigurar-se um mundo de senhores e escravos.
Com frieza e desassombro, este novo poder exige que aceitemos com naturalidade que o futuro será sempre pior que o presente. Eles, na última década, decretaram a morte da ideia de progresso. Essa ideia que foi o motor das sociedades, pelo menos no Ocidente, nos últimos dois séculos.
Duas situações paradoxais. Crescem o conhecimento humano, a ciência e a tecnologia, a produtividade, reclama-se maior e melhor formação e educação para todos mas decreta-se a obrigação de todos esperarem uma vida pior! Por outro lado, dizem-nos que a paz, a segurança, a democracia, a liberdade, só se alcançam agora através da guerra pura e dura! Os outrora inimigos da civilização: a pobreza, a fome, a doença, a ignorância, são substituídos pelo outro, pelo vizinho, pelo pobre, pelo diferente. Movidos pelo egoísmo do lucro sem ética, caminhamos no sentido da destruição da civilização e do planeta.
No plano internacional, falecida a guerra fria, ganhou força a direita neoliberal. Encabeçada nos últimos anos por Bush, acolitado por Blair, fez constar que as ideologias se evaporaram e que a política morreu deixando de ser o motor da vida pública. O Estado deve ser odiado e prega o neoliberalismo que a religião e a cultura são agora os eixos que explicam as dinâmicas sociais. Eis uma habilidade para ocultar os interesses materiais privados mais mesquinhos. Já não há inimigos por motivos económicos, militares ou políticos, apenas por diferenças culturais, morais ou religiosas! E a maioria do povo embarca na patranha.
Tão recentes que marcaram as nossas vidas, o diálogo, as diferenças e as trocas culturais, o respeito pelo diferente, a diversidade religiosa e o laicismo, faziam parte dos caminhos da civilização. O mundo era tido por mais belo por ser diferente. Agora, em vez de movimentos de aproximação fazem-se, objectivamente, todos os esforços para aumentar tensões e conflitos religiosos ou culturais. As guerras dos últimos anos são testemunho desta deriva para a barbárie em nome da democracia e da liberdade.
A nível interno, na Europa, os governos neoliberais (com rótulos de direita, de centro ou de esquerda) não ficam atrás em agressividade. Obedecem servilmente às orientações das organizações internacionais ao serviço dos poderosos. Escolheram proceder à desconstrução da coesão e da paz social, iniciada após a 2ª Guerra Mundial, com a criação do Modelo Social Europeu. Este, no passado um sinal de civilização, é agora apontado como causa da decadência da Europa.
A novíssima luta de classes está aí. Desta vez não declarada pelos debaixo. Não é uma revolta dos mais pobres. Esta novíssima luta de classes é imposta de cima. É uma determinação das elites, das classes cimeiras, da nova aristocracia tecnocrática e financeira.
O contrato social que após a 2ª Guerra Mundial orgulhava as nações do Ocidente e seduzia todas as outras, foi posto em causa. Denunciado pelos de cima. Esta declaração de guerra quer terminar com a coesão social e com a mínima decência de vida dos povos. O núcleo do novo contrato social já não é a cidadania e o bem estar das pessoas, mas apenas o lucro puro e duro.
A retórica sobre as deslocalizações é o exemplo acabado do suporte ideológico dos que decidiram abrir esta guerra social e criar o novo paradigma que consagre o seu domínio. Dizem que deslocalizam para obterem produtos mais baratos e mais competitivos. Então, porque continuam os preços a crescer? Porque razão as sapatilhas de marca, produzidas já não em São João da Madeira mas na China, nos são vendidas cada vez mais caras? Eis-nos a ser governados por aqueles que primeiro comem os ovos e depois acusam o povo de não saber fazer nascer pintainhos.
Não fazemos o balanço. Estas férias não fecham nem abrem um ciclo. Reencontraremos em Setembro o discurso público da catástrofe, da ameaça, do incitamento à insegurança e ao medo. Continuaremos, por enquanto, a viver mais da ameaça e da insegurança partilhadas do que da responsabilidade e da riqueza partilhadas. Ainda assim, vamos de férias sabendo que a humanidade é useira em caminhar muitas vezes para o abismo, mas, sabendo sempre, no último momento, evitá-lo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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