Página  >  Edições  >  N.º 159  >  O elogio das petúnias ou da imprevisibilidade dos avanços científicos

O elogio das petúnias ou da imprevisibilidade dos avanços científicos

... se a prática científica moderna opera de forma mais sistemática que no tempo de Darwin, a verdade é que continua e continuará a haver lugar a grandes avanços baseados em observações não planeadas. A razão é simples: é difícil, se não impossível, procurar por algo que não se suspeita que existe...

O esforço de divulgação de uma área científica passa frequentemente por enfatizar as aplicações desenvolvidas com base no corpo de conhecimentos gerado pelas actividades de investigação. Se , por um lado, esta abordagem tem a vantagem de expor de forma mais evidente a importância de investir em ciência, por outro, pode ter consequências perversas. Refiro-me em particular, à menorização daquele que é o pilar fundamental e motor de grande parte do desenvolvimento científico ? a chamada investigação fundamental ou básica, que é levada a cabo sem ter em vista nenhuma aplicação imediata do conhecimento produzido.
Se estamos longe dos períodos históricos em que predominou uma ciência utilitária ? por exemplo, a visão setecentista da Astronomia como ferramenta fundamental para resolver os problemas de determinação da longitude que tolhiam a navegação marítima contrasta com o entusiasmo com que a sociedade de hoje vê alargadas as fronteiras do conhecimento por esta ciência, sem esperar aplicações a curto prazo ? a verdade é que continua a ser vulgar ouvirem-se vozes críticas do investimento em projectos de investigação não aplicados. Estas objecções são particularmente evidentes na área da Biologia, talvez pelo seu maior afastamento dos domínios tecnológicos. Recordo-me, por exemplo, de não há muito tempo ouvir uma crítica violenta num programa de rádio sobre economia ao financiamento de estudos sobre ?peixinhos? ou ?passarinhos?. A este respeito é interessante lembrar um certo senhor que, de tantos passarinhos estudar, propôs uma das teorias científicas que mais profundamente modificou a nossa visão sobre o ser humano e o seu lugar no mundo ? chamava-se ele Charles Darwin (neste ponto seria interessante, mas obviamente inviável, fazer uma reflexão sobre a influência profunda que as visões estabelecidas sobre o ser humano e o mundo, científicas ou outras, têm sobre a organização económica, social e política da sociedade). E se a prática científica moderna opera de forma mais sistemática que no tempo de Darwin, a verdade é que continua e continuará a haver lugar a grandes avanços baseados em observações não planeadas. A razão é simples: é difícil, se não impossível, procurar por algo que não se suspeita que existe. Mas é, obviamente, nesse desconhecido que se encontram as descobertas mais surpreendentes. Este conceito é bem ilustrado por um exemplo muito actual da área da Biologia Molecular. Numa altura em que muitos (incluindo os especialistas) pensavam que os conceitos fundamentais estavam perfeitamente estabelecidos, esperando-se apenas aperfeiçoamentos menores ao que Francis Crick propôs como o Dogma Central da Biologia, eis que observações inesperadas estão a levar-nos às portas de uma pequena revolução, com promessas de grandes aplicações biomédicas. O Dogma está posto em causa pelo papel secundário que atribui à molécula de RNA no fluxo da informação genética, mero mensageiro entre o repositório central (o DNA) e os efectores moleculares (as proteínas). Eis que de repente o RNA emerge como um regulador principal deste fluxo e, quem sabe, a confirmarem-se alguns trabalhos mais recentes, como um agente directo da hereditariedade. Quem fez tremer o Dogma?
Curiosamente, tudo começou com um grupo de investigadores mal sucedidos nos seus esforços para produzir uma variedade de petúnia (uma bela flor de jardim, com um peso económico importante no mercado de plantas ornamentais) com cores mais profundas e valor comercial acrescido! E a verdade inverosímil é que da compreensão do fenómeno subjacente às estranhas cores das petúnias modificadas (envolvendo pequenos grandes esforços de dezenas de equipas de investigação de todo o mundo) surgiu uma nova tecnologia biológica, chamada interferência de RNA, que está a ser testada com sucessos promissores como terapêutica para as mais variadas doenças humanas. Assim se faz a Ciência.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular
Margarida Gama Carvalho
Faculdade de Medicina de Lisboa e Instituto de Medicina Molecular

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo