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O tempo das exuberâncias (I)

A propósito da carreira docente

Se nunca existiram mundos compostos em educação, e muito menos na educação escolar, a dúvida é o eterno terreno instalado onde se pode trabalhar e pensar sobre as questões educativas.
Os últimos decretos e propostas de alteração ao estatuto da carreira docente se suscitaram, por um lado, aquilo que são os discursos mais reconhecidos em torno da perda de autoridade, produziram, por outro lado, os discursos da desqualificação enquanto desapropriação. Assim, além de simbolicamente as alterações serem pensadas como a morte da idealização em torno do ser professor/a, elas são entendidas como medidas que irão originar dificuldades de reconstrução identitária e profissional, na medida em que há a percepção de um aniquilamento anterior. A fuga ao aniquilamento parece, então, um esforço que professores/as e muitos alunos/as têm em comum.
Não estamos, portanto, ainda num tempo de indiferença relativamente ao que se passa na escola. Parece-nos sim um tempo de exuberância, onde o excesso é a solução para a se procurarem anular as tensões e de se jogar com a contradição entre as carências e as abundâncias.
A exuberância é o extraordinário (Machado, 2002: 520). Neste lugar, assume duas funções. Por um lado, procura dar conta daquilo que é, afinal, a complexidade do campo educativo, por outro lado, dá conta da necessidade de saturação barroca do tempo na intenção de preencher vaziamente as lacunas decorrentes das contradições que hoje atravessam, em particular, a escola.
Considero que podemos pensar os excessos, ou as exuberâncias, neste contexto segundo três organizadores simbólico-epistemológicos: a exuberância discursiva, a exuberância do sagrado e, por fim, a exuberância das novas figuras profissionais. Estes organizadores constituem apenas propostas de leitura sobre algumas das mais recentes transformações atrás enunciadas. Começarei, então, pela primeira: a exuberância discursiva.

A exuberância discursiva

Se o discurso significa «acto de correr de um lado para o outro, de se espalhar para diversos lados» (Machado, 2002: 345), a exuberância em educação produz-se, em larga medida, através dos discursos contraditórios, e espalhados para diversos lados, sobre o governo da mesma. Por exemplo, são constitutivos da instituição escolar os discursos sobre a sua incapacidade de dar resposta a males sociais, ao mesmo tempo que aparece simbolicamente como o espaço da redenção e da criação de possibilidades, de cidadanias emancipatórias ou ainda de compensação de fragilidades. Aliás, por vezes, o próprio discurso funciona como instância compensatória de dificuldades estruturais da escola, ao mesmo tempo que, esquecendo aquelas, faz aparecer a violência ou o insucesso nuamente e de forma trágica. A compensação faz-se, então, através do dramático, dando imagens da escola como um espaço onde é impossível trabalhar ou estudar (Rochex, 2003: 14). Aliás, «prestamos atenção excessiva a acontecimentos com baixa probabilidade acompanhados de alto drama e menosprezamos acontecimentos que se dão de forma rotineira...» (Peter Bernstein citado por Sennett, 2001: 129).
Esta exuberância discursiva, que é constituída e constituinte de uma praxis, aparece hoje de modo mais visível no exercício da construção da culpa e da desculpabilização, da construção da autonomia ou da dependência da autonomia, ou da construção do individualismo que é como quem diz, muitas vezes, da solidão.
Apesar desta exuberância discursiva sabe-se, de facto, pouco do que se passa nas escolas, talvez também porque existem ilusões internas sobre o que realmente se passa, sobre a justificabilidade da escola e sobre as suas funções. Como têm professores e professoras dado conta da sua acção?
Por outro lado, parece ainda ser constitutivo da existência da escola a simultaneidade de alguns discursos. Por exemplo, a simultaneidade entre a construção da profissionalidade docente e a construção da argumentação e da prática que enformam essa mesma profissionalidade. A construção dessa argumentação é feita a partir do interior de práticas em constante julgamento pelos próprios/as protagonistas da acção. A par, existe ainda, a simultaneidade ou a contemporaneidade entre o discurso da precariedade e o da educação para o projecto, talvez porque o projecto se alimenta das precariedades.

Nota:
A participação nas Jornadas Pedagógicas promovidas pelo SPN de Braga possibilitou uma reflexão conjunta em torno do que são as preocupações mais recentes no âmbito da profissão de professor/a. Assim, este texto está ele próprio actualizado pelo debate e questionamento da minha participação nas referidas jornadas. O tema será aqui abordado em três artigos. Os próximos artigos serão publicados em Outubro e Novembro.

Referências Bibliográficas:

  • Machado, José Pedro (2002) Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte.
  • Rochex, Jean-Yves (2003) «Pistas para uma Desconstrução do Tema «a Violência na Escola». In José Alberto Correia; Manuel Matos (orgs.) Violência e Violências da e na Escola. Porto: CIIE/Edições Afrontamento.
  • Sennett, Richard (2001) A Corrosão do Carácter: As Consequências Pessoais do Trabalho no Novo Capitalismo. Lisboa: Terramar.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Sofia Marques da Silva
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Membro efectivo do Centro de Investigação e Intervenção Educativas.
Sofia Marques da Silva
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. Membro efectivo do Centro de Investigação e Intervenção Educativas.

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