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"A única questão verdadeiramente filosófica"

O SUICÍDIO

O suicídio é ainda um tema tabu. Para tentar desmistificá-lo, a PÁGINA propõe neste dossier uma breve incursão histórica e traça o panorama da actual situação em Portugal. De acordo com dados avançados pela Organização Mundial de Saúde, as taxas de suicídio no país são baixas por comparação a outros países europeus e a tendência tem sido para a estabilização.
Para obter um retrato mais completo deste tema, a PÁGINA fala ainda com Neuza Almeida, psicóloga do núcleo de apoio médico e psicológico do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa, e entrevista o psiquiatra Bessa Peixoto, presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia.

?A única questão verdadeiramente filosófica?. Assim se referiu ao suicídio o escritor e intelectual francês Albert Camus, em ?O Mito de Sísifo?. O sociólogo alemão Emile Durkheim, por sua vez, considerou na sua obra ?O Suicídio? que ele era ?uma denúncia individual de uma crise colectiva?. Independentemente das inúmeras reflexões que se têm produzido ao longo da História sobre este assunto, a única verdadeira certeza é o facto de o acto suicida ser tão antigo quanto antigo é o questionamento do Homem sobre si mesmo e sobre os seus problemas existenciais.
No Ocidente, uma das primeiras referências ao suicídio é mencionada na própria Bíblia, onde se relata a morte de personagens como Sansão, Eleazar ou Judas. Na Grécia antiga, o suicídio era encarado como um delito contra a comunidade e eram negadas as honras fúnebres aos que o cometiam. Só o Estado podia autorizar, e mesmo induzir, o acto suicida ? como foi o exemplo de Sócrates, forçado a pôr termo à vida através da ingestão de veneno.
Em Roma, a legitimidade do suicídio estava reservada apenas aos homens livres, que, ao matarem-se, exerciam sobre si mesmos o direito inerente à sua condição social. Aos escravos, e pela lógica inversa, essa liberdade estava vedada.
Já no antigo Egipto, os escravos não tinham outra escolha senão a de serem sepultados juntamente com os seus donos e senhores. Esta tradição está também presente na tradição Hindu, onde a mulher, após enviuvar, precipitava a própria morte para posteriormente ser queimada em pira funerária.
Situado numa orla dúbia entre a tolerância e a coibição, o suicídio passa a ser explicitamente condenado durante os primeiros séculos da era cristã e definitivamente inscrito na lista de pecados mortais no século V, por decisão do Concílio de Arles. A partir desta altura, passa a ser negado aos suicidas cristãos o direito a cerimónia fúnebre e ao enterro, sendo o cadáver castigado publicamente, exposto nu ou queimado.
Habitualmente associado a estados de angústia e de sofrimento, o suicídio nem sempre é motivado em exclusivo por este tipo de sentimentos. Em algumas culturas, nomeadamente nas orientais, a morte auto-induzida decorre frequentemente de razões inspiradas na dignidade e na honra. A representação social da morte é nestes casos amparada na crença de que o espírito defunto terá mais força para actuar na estrutura social do que permanecendo vivo numa situação cuja única saída honrosa seria o suicídio.
Neste sentido, é curioso verificar que na língua japonesa existem cinco designações para caracterizar o acto suicida: ?funshi? (suicídio com intenção dolosa); ?jibaku? (suicídio por deflagração com o objectivo de destruir o inimigo); ?junshi? (suicídio do escravo em virtude da morte do respectivo amo); ?seppuku? (suicídio por incisão do abdómen - ou harakiri); e ?shinju? (suicídio por paixão amorosa).
Em outras latitudes, em particular nos países islâmicos, tem-se assistido, por sua vez, a uma crescente sacralização do acto suicida, motivado, na esmagadora maioria dos casos, por razões de ordem política.

Portugal apresenta baixa taxa de suicídio no contexto europeu

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), ocorrem anualmente em todo o mundo cerca de um milhão de suicídios (um número mais elevado do que as mortes conjuntas provocadas por guerras e homicídios), constituindo uma das três principais causas de morte na faixa etária entre os 15 e os 34 anos de idade.
Muitos especialistas, porém, consideram que este número deverá ser mais elevado, já que, além de não existirem dados estatísticos relativos a este problema em muitos países, muitos suicídios são considerados decorrentes de acidentes pessoais ou de trabalho. Além disso, a OMS estima que se verifiquem cerca de dez a vinte vezes mais tentativas de suicídio do que aquelas que resultam em morte.
Ainda de acordo com números da OMS, Portugal tem uma das mais baixas taxas de suicídio do continente europeu (apenas suplantado pela Albânia e pela Grécia), com uma média anual de 5,1 mortes por cada 100 mil habitantes, números semelhantes aos dos restantes países do Mediterrâneo, contrariamente aos do Norte, Centro e Leste Europeu.
De facto, países como a Lituânia, Rússia, Bielorússia, Hungria, Estónia, Letónia, Eslovénia e Ucrânia ocupam os primeiros oito lugares no ranking de uma lista onde são apresentadas as estatísticas mais recentes relativas a um conjunto de países europeus e mundiais (ver quadro), onde Portugal surge colocado no 40º lugar.
Na Europa, o rácio de suicídios por género mostra que existem maiores diferenças na Finlândia, Grécia, Irlanda e Portugal, registando-se quatro mortes no sexo masculino para uma no sexo feminino. Se no continente europeu a taxa de suicídios diminui, de maneira geral, de Norte para Sul, em Portugal continental verifica-se a situação inversa, com os suicídios a registarem valores mais elevados em regiões como o Alentejo.
De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, entre 1996 e 1999 a maior taxa média anual de suicídios registou-se precisamente nesta região, em ambos os sexos, com valores globais que variaram entre os 28,4 suicídios por cem mil habitantes no Alentejo litoral e os 19,8 do Alentejo central. Factores como a solidão, a desertificação e a inexistência de redes sociais de vizinhança são avançadas pelos especialistas como algumas das possíveis causas para este fenómeno.
A região norte do país registou globalmente e no mesmo período os índices médios anuais mais baixos, registando valores situados entre os 3,2 em Trás os Montes e os 0,5 no Grande Porto. A maior crença religiosa da população nortenha funciona, também na opinião dos especialistas, como um forte factor de desencorajamento.
Apesar de serem as mulheres quem mais tenta o suicídio, são os homens quem mais o consuma. Em Portugal os suicídios masculinos representam mais do triplo dos femininos, com uma média de 9,4 por 100 mil habitantes contra 2,8 nas mulheres, sendo na classe etária correspondente aos indivíduos com mais de 75 anos que se verifica a maior taxa de incidência.
Por outro lado, é de registar que existe também uma maior incidência do suicídio entre os indivíduos divorciados e solteiros.

A importância da prevenção

Apesar de o suicídio ser um acontecimento raro entre crianças e jovens, os estudantes universitários são considerados um grupo de risco. De acordo com Neuza Almeida, psicóloga do núcleo de apoio médico e psicológico do Instituto Superior Técnico (IST) da Universidade de Lisboa, num universo de perto de 700 estudantes que recorreram a este serviço nos últimos cinco anos, 19 por cento apresentava ideação suicida.
Numa investigação conduzida há seis anos por esta psicóloga e pela sua colega Joana Rosa, estudou-se a associação entre a depressão, a desesperança, o perfeccionismo e a ideação suicida num grupo de 364 estudantes universitários de vários cursos na área da Grande Lisboa. De acordo com Neuza Almeida, os resultados apontaram para o facto de a ideação suicida ter-se ?correlacionado positivamente com o perfeccionismo e de forma significativa em ambos os sexos?, tendo sido ?encontradas diferenças entre os vários cursos para as variáveis psicológicas estudadas.?
Num outro estudo, efectuado em 2002 junto de um universo de estudantes do IST e da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, encontrou-se também uma forte correlação entre auto-confiança, ansiedade, perfeccionismo e ideação suicida.
Conclusões que, na opinião desta investigadora, ?remetem para a necessidade de criar mais serviços de acompanhamento psicológico no ensino superior? e para a elaboração de ?programas de prevenção adequados às dificuldades específicas de cada curso.?
Na opinião do psiquiatra Bessa Peixoto, coordenador da consulta de prevenção do suicídio do departamento de Psiquiatria do Hospital de S. Marcos, em Braga, e presidente da Sociedade Portuguesa de Suicidologia, Portugal tem assistido, nos últimos anos, a uma estabilização das taxas de suicídio.
Para este quadro concorre, na opinião deste especialista, o facto de as estruturas de saúde em Portugal terem vindo a apostar na criação de unidades de atendimento para situações de crise.
?Esta resposta em tempo útil é um aspecto fundamental na prevenção, porque está comprovado existir um grande risco de se verificar uma segunda crise de suicídio nas 48 ou 72 horas seguintes à primeira tentativa?, explica Bessa Peixoto (ler entrevista neste dossier).
Para os leitores mais interessados, a OMS disponibiliza um manual com algumas indicações úteis sobre a prevenção do suicídio destinado a professores e educadores, que pode ser descarregado num link desta organização (www.who.int/entity/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_educ_port.pdf), onde se traça um quadro geral das situações de risco na infância e na adolescência e se propõem algumas medidas destinadas a prevenir situações de crise.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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