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As carpideiras da educação nacional

O historiador Rui Tavares dava conta no jornal PÚBLICO de um debate, ocorrido na Casa Fernando Pessoa, em torno da questão: «Os clássicos devem ou não ser estudados na escola?». Na mesa, que abordou tão profundo tema, estavam Vasco Graça Moura, Maria Filomena Mónica, Clara Ferreira Alves, o escritor Gonçalo Tavares e o comerciante de livros Guilherme Valente. Pela descrição bem humorada de Rui Tavares ficámos a saber que o debate sendo consensual ? todos a favor dos clássicos ? gerou enormes paixões e exaltação dos intervenientes. Excitação de tal monta que Filomena Mónica terá a certa altura defendido que «talvez a única solução seja fuzilar os professores e começar tudo de novo». Pelo que entendi, professores que estavam na sala, ao ouvirem a sentença, apressaram-se a abandoná-la antes de serem feitos às postas pela douta «cientista» e «pensadora».
Rui Tavares conta que «quando me levantei para falar só fui capaz de debitar a lista de clássicos que estudámos na minha escola secundária em finais da década de 80, numa escola pública que não entrou sequer nas 200 melhores do ranking e em plena terra queimada dos ?filhos de Rousseau?: o cancioneiro galaico-português, Fernão Lopes, Gil Vicente, a Tragédia Castro, a lírica e a épica camoniana, a parenética vieiriana e por aí adiante até Herculano, Garrett, Camilo, Eça e ? ai de nós ? Fernando Pessoa». E mais adiante o historiador conclui com amargura: «de nada vale, contudo, escrever num jornal que sim se ensinam os clássicos na escola: os jornais, os colunistas de jornais, os leitores de jornais, os directores de jornais, já sabem que não é verdade. A elite portuguesa está plenamente convencida de que na escola se ensina a jogar playstation. Nenhuma informação em contrário penetrará nessa barreira ideológica, social, cognitiva». (Rui Tavares, Público, As carpideiras, 27.05.06, p. 6).
O Ministério da Educação, ao mesmo tempo que vai tomando medidas avulso, encomendou ao Conselho Nacional da Educação um debate Nacional sobre a educação. O objectivo é claro. Querendo continuar a tomar medidas penalizadoras dos que trabalham na área importa-lhe respaldar-se publicamente em opiniões que sejam favoráveis às suas políticas. Vamos por isso ver o «debate» a ser animado pelas carpideiras nacionais, isto é, pela elite que está plenamente convencida que eles foram os últimos que passaram por um «ensino a sério», antes de se entrar na miséria educativa que denunciam. Para diminuir o espaço de intervenção profissional dos professores é importante, para o ME, instigar os aliados, manter o alarido nacional e a ideia de uma situação catastrófica no ensino a exigir medidas repressoras e de controlo de cima para baixo. Uma política batida e conhecida.
O nosso sistema de ensino não tem problemas? É evidente que tem e não conheço nenhum que os não tenha. Pode e deve mudar-se? É evidente que deve, não conheço nenhum que não deva e não queira melhorar. Se muitos alunos portugueses não aprendem o que sabemos que poderiam aprender, esse é um problema grave que todos somos chamados a resolver. Mas uma coisa é querer superar os problemas que realmente temos e outra é pensar que os problemas da nossa escola são os imaginados pelos donos momentâneos do poder e os correligionários que os influenciam. A transformação do nosso sistema educativo tem de ser feita a partir do que somos e do que temos. Uma mudança que tem de ter como sujeitos do processo os protagonistas da educação, os alunos, os professores, os cientistas da educação e os pais que temos.
Estamos no final da sociedade industrial. O sistema educativo em vigor foi criado para o capitalismo nascente e desenvolveu-se em paralelo com o desenvolvimento das sociedades industriais nos dois séculos que se lhe seguiram. É natural que se estas sociedades chegaram ao fim seja necessário reinventar um outro sistema educativo. Mas não parece que tal criação se possa fazer a partir do nada e fazendo tábua rasa de tudo o que fomos capazes de fazer e desenvolver.
Não adianta começar a construir o edifício pelo telhado. Se queremos desenhar o novo modelo educativo para a sociedade que agora temos, comecemos por pensar o social e depois o escolar. Em distintas regiões do mundo há problemas sociais, económicos, culturais e políticos muito diferentes como são diferentes os níveis de desenvolvimento entre países e tudo isso influencia hoje os modelos e os processos educativos nacionais. Não adianta fecharmo-nos no nosso pequeno mundo pensando a nossa educação como se ela fosse um caso único e, ainda por cima, uma catástrofe nacional. Seja qual for o nosso ponto de vista crítico reconhecemos que o mundo se globalizou. A interdependência entre os povos é um facto. Já não há políticas nacionais autárquicas. As sociedades nacionais já não se pensam sem pensar as outras. As redes de inter-relações mundiais obrigam-nos a pensar a nossa sociedade ? e por arrastamento a educação ? tendo em conta as novas realidades e interesses mundiais. Não para nos submetermos aos grandes interesses que governam o mundo mas para nos defendermos deles.
A nossa escola está capaz de preparar a nossa juventude de modo a que esta seja capaz de enfrentar e responder aos novos desafios e poderes com criatividade e autonomia ou está condenada a ser manipulada pelos interesses dominantes e a adaptar-se ao que lhe é imposto de fora e de cima? Que novas responsabilidades se podem atribuir ao sistema educativo? Que mudanças essas novas responsabilidades provocam no edifício escolar? Que professores, que competências, que novos papéis profissionais temos de saber criar e desenvolver? Que jovens, que alunos queremos ajudar a formar? Que valores queremos afirmar? Que modelo de sociedade? Que economia? Que cultura?...
Temos escrito, dito e repetido que o modelo escolar que herdámos tem as suas possibilidades de desenvolvimento esgotadas. Que, porventura, ele já não é reformável. Que precisamos de reinventar um novo sistema educativo. Que esse é um desafio e um trabalho colectivo. Que é na construção dessa resposta que nós professores poderemos criar e reinventar uma nova identidade profissional. Que a resposta está no novo e não em qualquer modelo do passado. E que este desafio pode tornar a nossa profissão socialmente ainda mais útil e cada vez mais gratificante.
Centramos o desafio nos que dia a dia fazem e vivem a educação. Atribuímos aos professores a responsabilidade maior por esta mudança. Mas somos confrontados pelas ideias feitas dos que têm de facto o poder. Para estes, e para as carpideiras nacionais, a resposta não está no colectivo mas no individual. Não está na educação mas na gestão. Para eles, convencidos que todos os problemas do mundo se resolvem com a magia gestionária, o futuro é uma questão de gestão e de gestores. Sacralizaram as técnicas de gestão empresarial. Fizeram do mercado o seu deus e dos gestores os sacerdotes desta nova religião. Por isso pensam que os problemas da escola se resolvem colocando a geri-la um testa de ferro. Alguém que empunhe a cenoura e o chicote, que mande e que imponha o seu projecto! Pobres cabeças pobres que tanto prejuízo nos dão!
Precisamos todos de pensar e de agir. Mas não precisamos de o fazer com o simplismo bárbaro, ignorante e saudosista dos que vêm nos modelos fordistas do passado as soluções para o futuro. Nem podemos submetermo-nos aos ditames do poder quando ele é manifestamente ignorante e prejudicial aos nossos alunos. Com a delicadeza com que aprendemos a dizer ao aluno ou à aluna que ele ou ela não sabe, é preciso dizer à Senhora Ministra, aos Senhores Secretários de Estado e às carpideiras nacionais que eles não sabem. E explicar. E teimar. E ensiná-los. Esse é também um dever individual e colectivo nosso. Um dever que decorre da nossa ética profissional.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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