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"O sindicalismo tem de ir além do discurso panfletário e das palavras de ordem"

A realização da tese de Doutoramento trouxe-o a Portugal em 1999, projecto que levou a efeito na Universidade do Porto com uma Tese no domínio das Ciências da Educação, resultante de uma investigação comparativa sobre o posicionamento do sindicalismo docente brasileiro (CNTE) e português (Fenprof) sobre as políticas educativas voltadas para o campo temático da educação e do trabalho.
Desde então, Ivonaldo Neres Leite, professor do Departamento de Educação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, no Brasil, tem mantido uma estreita relação com Portugal, seja no âmbito da colaboração académica, seja na esfera da produção bibliográfica, sendo colaborador regular de a Página da Educação.
Com uma formação pluridisciplinar, indo da Teoria Social às Ciências da Educação, tem tido como domínios académicos a História Económica e Social, a Economia e a Sociologia da Educação, a relação entre Educação e Desenvolvimento Local, assim como a temática Trabalho e Sindicalismo, nomeadamente o Sindicalismo Docente. Em mais uma visita a Portugal, como Professor Convidado, concedeu a entrevista que se segue à Página da Educação.

Ivonaldo Neres Leite, autor de investigação comparada sobre movimento sindical docente brasileiro e português, afirma em entrevista:

Pode explicar-nos em que contexto surge a ideia de realizar uma investigação comparada sobre o posicionamento do sindicalismo docente brasileiro e português?

Quando cheguei a Portugal para realizar a tese de doutoramento, o meu objectivo inicial era estudar o movimento sindical brasileiro através de um estudo de caso da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), uma entidade situada no mesmo plano ideológico da Federação Nacional de Professores (Fenprof). O meu objecto de estudo era, mais precisamente, saber qual tinha sido o posicionamento da CNTE face às políticas educativas nas áreas da educação e trabalho no Brasil durante a década de 90.
A partir da frequência de alguns seminários na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, e em interacção com o meu orientador, o professor José Alberto Correia, decidi evoluir em relação ao meu propósito inicial e desenvolver uma investigação centrada na comparação entre o Brasil e Portugal, procurando saber de que forma uma organização sindical portuguesa com características semelhantes à CNTE tinha actuado relativamente às políticas educativas na área da educação e trabalho, já que nessa altura este tema foi cimeiro na agenda política dos dois países.

A que conclusões chegou a partir da sua investigação?

Em primeiro lugar, de que o aumento de qualificações não é, por si só, uma garantia de desenvolvimento e de emprego, ou melhor, de que não existe uma relação directa entre o acréscimo de qualificação, o desenvolvimento económico-social e a garantia de colocação no mercado de trabalho.
Porque o que gera emprego e desenvolvimento não são os diplomas, mas sim as políticas económicas. Não adianta qualificar a população de um determinado país permitindo ao mesmo tempo a desindustrialização e a deslocalização do sector produtivo para outras regiões onde o custo da mão-de-obra é menor.

Mas será que o aumento de qualificação, em si mesma, não constitui uma mais valia para um país?

Sim, sem dúvida. No entanto, isso não pode servir de justificativo ideológico para que o discurso dominante e os governos não encarem os problemas de frente e ocultem as verdadeiras causas do desemprego estrutural e da desindustrialização.
Outra das conclusões a que chegamos é que tanto a Fenprof como a CNTE têm posições convergentes do ponto de vista ideológico e político, estando inclusivamente filiadas nos mesmos organismos internacionais, mas também têm posições que as demarcam relativamente a um conjunto de questões, justificadas, na minha opinião, por se situarem em contextos sociais e políticos bastante diferentes.
O facto, por exemplo, de a sociedade portuguesa ter experimentado políticas de bem-estar social, mesmo que tardias por comparação a outros países europeus, por oposição a uma sociedade como a brasileira que não sabe o que é o Estado Providência e onde as conquistas sociais começaram a ser delineadas apenas a partir do final da ditadura, em 1985, e com a nova constituição de 1988.

Em que medida essas condicionantes determinam a actuação das duas centrais sindicais?

Porque enquanto na classe docente, e na sociedade brasileira em geral, são prementes as reivindicações de carácter material, elas já não se colocam com o mesmo carácter prioritário na sociedade e na classe docente portuguesa porque são questões relativamente alcançadas.
Isso faz com que as duas organizações, mesmo tendo princípios que as colocam em campos de políticos e de acção semelhantes, lutem por metas diferentes. A CNTE, por exemplo, tem uma posição extremamente crítica relativamente à integração do Brasil em blocos económicos como a Associação de Livre Comércio das Américas (ALCA) ou o próprio Mercosul. No caso do sindicalismo português, assiste-se a uma maior convergência com os princípios estabelecidos no âmbito da União Europeia.

Pablo Gentili, investigador do Observatório Latino-americano de Políticas Educacionais, a quem a Página entrevistou recentemente, admitia que o movimento sindical estava em queda. No entanto, ele ressalvou o facto de ter sido o sindicalismo docente, associado aos movimentos sociais, o grande responsável pela contenção das políticas neoliberais no continente e em particular no Brasil. Partilha da mesma opinião?

No caso do Brasil, o movimento sindical docente desempenhou, de facto, um papel central nessa movimentação. Não tenho a menor dúvida de que se os sindicatos e a sociedade civil não estivessem tão fortemente organizados a influência do neoliberalismo teria ido mais longe nas políticas públicas. Ao contrário do que algumas possam afirmar, no Brasil, ao contrário do que se passou na Argentina, por exemplo, a profundidade do neoliberalismo naõ chegou tão longe.
A partir da segunda metade dos anos noventa, porém, essa crise, que de algum modo já se fazia sentir desde o início da década, intensifica-se. É um fenómeno que, na minha opinião, está directamente relacionado com os acontecimentos na esfera política, na medida em que os militantes que deram suporte a esse sindicalismo foram eleitos para o parlamento ou para cargos do poder executivo.
Houve, assim, uma espécie de pragmatismo eleitoral que esvaziou esse movimento sindical do poder de pressão que o caracterizava. Pode afirmar-se, por isso, que a crise do sindicalismo brasileiro é hoje mais intensa do que foi no início dos anos noventa.

Nesse contexto, que evolução prevê para o movimento sindical e para escola pública brasileira no futuro próximo?

Na minha opinião, o futuro dos movimentos sociais e da escola pública brasileira estará directamente relacionado com a evolução da conjuntura política.
Algumas das mais importantes figuras do actual governo brasileiro estão vinculadas ao campo do sindicalismo e dos movimentos sociais, pelo que, tendo em conta que este ano se irá realizar a eleição para a presidência da república ? à qual, com quase toda a certeza, concorrerá o actual presidente Lula da Silva ?, o escrutínio servirá para avaliar até que ponto os sindicatos estarão dispostos a manter a paz social que tem caracterizado, em maior ou menor medida, a sua legislatura. 
Existiram ou não avanços do ponto de vista progressista por comparação com o governo anterior? Houve ou não continuidade das políticas neoliberais? Registaram-se avanços na democratização do acesso ao ensino público? Deteve-se a vaga de privatização do ensino? É este tipo de respostas que, na minha opinião, irão determinar o futuro do movimento sindical brasileiro.

Movimento sindical deve reconfigurar a sua actuação

Tendo em conta o actual contexto de tentativa de reconfiguração da escola pública, qual pode ser o papel do movimento sindical docente no sentido de contrariar essa tendência?

De facto, é inegável a intenção de transformar a escola pública no sentido de adaptá-la aos mecanismos de gestão utilizados no mercado, procurando através deles obter dados quantificáveis, tal como acontece nas empresas.
Face a esta intenção, um dos principais desafios para o movimento sindical docente passa pela forma como ele deve posicionar-se no quotidiano, pautando a sua atitude mais na base das propostas e menos na posição denunciadora. O sindicalismo tem de ir além do discurso panfletário e das palavras de ordem.

Pode concretizar melhor essa ideia?

O que eu pretendo dizer é que devem procurar-se novas modalidades de pressão social junto dos governos. A greve é um bom exemplo. Quando se convoca uma greve isso não significa que tenha de se interromper a relação de aprendizagem. Dependendo da forma como ela for gerida, uma greve pode perfeitamente tornar-se num momento político-educativo. Porque fora da escola também se aprende?

Existem outras propostas concretas?
 
Sim, designadamente ao nível da formulação das políticas educativas. E nesse sentido é urgente que o movimento sindical requalifique a sua intervenção. Ao contrário de se limitar a esperar que a cada mudança governativa ou ministerial a nova tutela divulgue o respectivo projecto, os sindicatos de professores deveriam antecipar-se na apresentação pública das suas propostas para o sector.
Este foi um dos aspectos sobre o qual incidiu a minha investigação. E através dela cheguei também à conclusão de que os sindicatos assumem por vezes uma postura muito conservadora face a determinadas reformas, defendendo a manutenção do status quo.
Por outro lado, o movimento sindical docente precisa também de recuperar uma dimensão que esteve na sua origem, que é a de entender a educação como um fenómeno mais amplo, que olhe para além da escola.
E esta é uma reflexão quase sempre esquecida, na medida em que os sindicatos limitam muitas vezes a abordagem educativa à educação escolar, reflectindo, dessa maneira, a hegemonia de um certo conceito de escola... Mas é preciso lembrar que a escola é apenas um momento de aprendizagem e que aquilo que acontece fora dela também é importante para o processo educativo.
Nesse sentido, é necessário que o movimento sindical docente procure ?descolonizar? a educação na escola, isto é, de fazer com que o acto educativo se alargue a outras esferas, mostrando que, por vezes, é preciso contrariar algumas determinações da escola burocrática.

Está a afirmar, portanto, que as organizações sindicais devem ter um papel de promoção de outro tipo de escola e de aprendizagens?

Sim. Se tivermos em conta a história do movimento sindical docente, poderemos constatar que, tanto no Brasil como em Portugal, as associações profissionais do sector desempenharam desde o início um papel educativo muito significativo. O papel dos sindicatos nem sempre se centrou na defesa das condições de trabalho, na reivindicação salarial ou na crítica às políticas educativas, mas passou também pela promoção da educação e de modos de aprendizagem.
É nessa medida que considero que o movimento sindical docente precisa de regressar à sua dimensão original, passando de actor para autor educativo, promovendo outro tipo de escola, não baseada nos exames.

O Ivonaldo questiona num dos seus artigos escritos para a Página se ?será possível ir mais além da racionalidade formal, da produtividade pela produtividade, perguntando para quê e para quem essa produtividade?. Não teme que a escola se venha a tornar de uma forma progressiva imbuída de uma racionalidade formal excessiva? 

A forma como actualmente estão a ser delineadas as políticas para a educação, para o emprego e para a qualificação têm cada vez mais em conta apenas o produto e não a reflexão sobre o processo. O que é importante, na óptica desta estratégia, é qualificar a mão-de-obra e apresentar resultados quantitativos, e não reflectir sobre quem ganha e quem perde.
Os conceitos de racionalidade formal e de racionalidade substantiva baseiam-se precisamente nesta luta de contrários. Pode ser muito interessante, por exemplo, pensar na instalação de indústrias na Amazónia, argumentando que o Brasil precisa de aumentar a sua produtividade económica. Esta é a visão da racionalidade formal. A racionalidade substantiva preocupa-se com os fins e os porquês, obrigando-nos a perguntar até que ponto a desflorestação compensa economicamente e se ela não será, acima de tudo, prejudicial para o país e para o planeta.
E, de facto, a escola corre hoje o risco de ser impregnada dessa racionalidade formal, fazendo-a perder a sua dimensão socializadora, porque o que está em causa é, muitas vezes, uma ideia instrumental da escola ao serviço dos valores de mercado. No entanto, na minha opinião, esse processo dependerá em maior ou menor medida da forma como sejam geridas as parcerias entre a escola, o mercado e a sociedade.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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