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A televisão do meu des(contentamento)

A televisão é um negócio da China. No seu interior vive-se a loucura dos grandes números, mercê da histeria colectiva em que se transformou. Ela é um fenómeno de massas alienadas, geradora de maiorias absolutas, de religiões de Estado e entrave de revoluções.
Além de normalizar, tem igualmente um efeito moralizador. Globaliza comportamentos padronizados, propaga doutrinas e impõe modelos políticos e económicos.
Assim, nos vai ela anestesiando a febre de sentir a vida... manipulando a opinião pública com dados viciados, tornando-nos escravos do tempo e da sociedade, construindo e arrasando mitos e heróis por capricho, vendendo-nos a alma ao desbarato ao fazer de cada Homem um artigo de uma produção em série.
Num país em banho-maria como o nosso, um país-projecto adiado, a televisão pode ser uma questão de economias. Poupam-se os euros da ida ao teatro ou da compra do livro.
A TV não mata nem aviva a vida. A TV tornou-se a própria vida. Ela serve-nos de bandeja o bife já mastigado, fazendo-nos viver a aventura pacificamente enterrados num sofá.
Ao apresentar-nos o mundo dividido entre «o bem» e «o mal», cria uma espécie de harmonia feita de aceitação. Tudo está bem, quando tudo está mal. O anormal normaliza-se à força da habituação. O real torna-se ficção quando é transposto para o ecrã e recebido com a conivência, a resignação e a insensibilidade de quem assiste à vida dela não fazendo parte.
Perante os nossos olhos, em imagens sucessivas, move-se o mundo a uma velocidade estonteante. Raras vezes colorido, muitas enxovalhado, quase sempre de competição e cinismo, de agressividade e injustiça. E nós, impávidos e serenos, sonhando acordados, pomos o pé no travão, enquanto na caixinha mágica se vão fabricando representações dum mundo a duzentos à hora.
Fazendo da realidade fantasia, ela gera analistas cruéis que comentam o número de mortos no Iraque, com a mesma serenidade e à vontade com que minutos antes examinaram o défice das contas públicas.
Não há lugar para pieguices, nesta fábrica de sonhos. Aqui, os minutos custam centenas, and the show must go one, custe o que custar.


  
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Paulo Marques
Professor
Paulo Marques
Professor

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