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Era uma vez?

Como se sentirão aqueles professores, formados depois do 25 de Abril, que se vêem acusados por Filomena Mónica como responsáveis principais pelo mal em que se encontra o ensino, sobretudo quando assumem de forma capaz e competente o seu papel quer como agentes culturais quer como cidadãos responsáveis, apesar dos problemas e das exigências que se lhes colocam quotidianamente?

Andámos a ler a meias o «Bilhete de Identidade». Escrito por Maria Filomena Mónica, não é a obra-prima que alguns andaram a anunciar, embora, e para nós, tenha sido um livro útil enquanto pretexto para reflectirmos sobre o mundo que MFM nos revela. Um mundo que, fora alguns dos dramas pessoais vividos pela autora, se nos afigura como mais próximo daquele que os contos de fadas apadrinham, do que deste universo onde o selfe-se quem puder se tornou a palavra de ordem aparentemente inevitável. Um mundo onde alguém, em quatro meses, se podia preparar sozinha para o exame de Literatura Portuguesa, obtendo 16 valores nessa prova, e, simultaneamente, ser aprovada em Latim e Grego, por via da actuação miraculosa de uma explicadora que embora a tenha advertido para o facto de, segundo as suas palavras, não ficar a saber nada, ?talvez passasse nos exames? caso ?seguisse os seus conselhos?. O que no caso do Grego se veio a confirmar graças a ?um truque, o do manual francês?, executado no Liceu Maria Amália com a conivência do ?grau de ignorância das examinadoras?, condição para que ?a prova fosse tão rápida que ? confessa MFM ? saí de lá com um 13?. Um mundo onde uma licenciada em Filosofia podia ser admitida como estagiária no Centro de Investigação Pedagógica da Fundação Gulbenkian, mesmo que não revelasse qualquer tipo de interesse pelas coisas da educação ou sequer tivesse alguma experiência e competências no domínio da investigação. Um mundo onde essa estagiária podia, ainda, decidir, ao fim de algumas semanas, o tema de um projecto de pesquisa, beneficiar dos recursos do Centro de Cálculo Científico dessa Fundação, usufruir do trabalho de um número apreciável de professores da «Telescola», disponível para aplicar um questionário, o qual envolvia um grupo-alvo de 8000 jovens, subordinado à temática dos tempos livres dos adolescentes. Um mundo onde não se era penalizado pelo facto de um tal trabalho não ter sido concluído devido a uma qualquer lacuna de carácter metodológico. Um mundo onde um licenciado, com um currículo profissional e académico inexistente, podia pensar num doutoramento em Oxford, beneficiando de uma bolsa de estudos para três anos, tendo por base uma opção em função da qual prescindia do doutoramento em Psicologia, só por ter tomado conhecimento que a Sociologia estava proibida em Portugal. Um mundo onde um licenciado, mesmo que tendo vindo de Inglaterra com um doutoramento por acabar e para fazer face aos problemas económicos com que se debatia, podia decidir que ?a melhor solução era o ingresso na carreira universitária?. Decisão que tomou forma por intermédio de um amigo que a deu a conhecer a alguém com poder suficiente para a convidar para sua assistente, apesar de até esse momento a única coisa notável do seu currículo ser a obtenção de uma licenciatura com «Bom», definida pela própria como uma experiência formativa medíocre, e o conjunto de actividades de estudo e de investigação conducentes à realização da inacabada, na altura, tese de doutoramento.
O que poderão pensar milhares de jovens deste país ao lerem um livro como o «Bilhete de Identidade»? Como é que estes jovens se sentirão, ao confrontarem-se com a leitura de um livro sobre um mundo algo irreal, sobretudo depois de terem trabalhado de forma desumana e quantas vezes inútil só para poderem entrar numa universidade? Como é que se sentirão aqueles investigadores que não vêem os seus projectos financiados face à diletância científica e académica do mundo em que MFM se pôde movimentar? Como é que se sentirão aqueles professores, formados depois do 25 de Abril, que se vêem acusados por MFM como responsáveis principais pelo mal em que se encontra o ensino, sobretudo quando assumem de forma capaz e competente o seu papel quer como agentes culturais quer como cidadãos responsáveis, apesar dos problemas e das exigências que se lhes colocam quotidianamente? Como é possível continuar-se a falar assim? Como é possível continuar-se a ignorar que o mundo, as escolas, os alunos e os professores não podem dar-se ao luxo de hesitar e tergiversar como alguns de nós, no passado, o puderam fazer? Como é possível continuar-se a alimentar a ficção em torno da qual se defende que existem todas as respostas para os problemas das escolas deste país, desde que os professores abandonem, definitivamente, o credo rousseauniano do bom selvagem, o qual, na verdade, pouco ou nada tem a ver com o que se passa nas nossas escolas? Como é possível que aqueles que viveram situações como as que MFM nos relata possam continuar a reflectir sobre o mundo e a prescrever uma visão desse mundo que, para além de ignorar algumas das suas facetas mais decisivas, tende a iludir as suas próprias vivências e experiências de vida, não enfrentando, também e finalmente, as contradições entre uma tal visão e estas mesmas vivências e experiências? O que dizer quando aqueles que proclamam a exigência e o rigor como qualidades a preservar são os mesmos que tendem a pensar este mundo em função dos preconceitos e dos estereótipos relativos ao mundo do «era uma vez» em que viveram e onde, de algum modo, ainda vivem?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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