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Arsénio Mota e o acto de escrever
Não é fácil neste momento falar do que tem sido a literatura para Arsénio Mota ao longo de cinquenta anos de escrita, repartidos pela poesia, conto, narrativa, crónica, estudos literários e histórias para crianças. A obra fez-se de livro a livro, entre muitos sonhos e anseios, trabalhos e canseiras. E, antes de falar desse trajecto pessoal, permitam-me que comece por dizer, sem alguma espécie de originalidade, que a "oficina" do escritor nunca é só aparente, porque sempre se revela através de muitas leituras e releituras, tentativas várias de variadamente dar a imagem certa do mundo que se conhece. A palavra, o mundo das palavras, a escrita como descoberta de outros sinais, a imagem que ganha forma e se reinventa depois noutros sinais mais antigos. O material do escritor é a folha de papel ou hoje mais vulgarmente o ecrã branco do computador, por onde revive ou reinventa os fantasmas que traz consigo, recria num labirinto de palavras, sempre cerrado ou magoado, esse "ofício de viver" definido por Cesare Pavese. Mas pela magia da própria escrita, nessa oficina em que se torna obra acabada ou uma e outra vez guardada ao canto da gaveta, à espera dos últimos retoques ou ter luz verde para avançar, é por aí que o escritor reinventa esse mundo de palavras que tanto podem servir para amar como para odiar.
Nessa sua oficina de tantos anos, metódica e equilibrada, Arsénio Mota retomou sempre novos e diferentes projectos e, sobretudo, procurou remexer e corrigir, no acto de depurar e clarificar o que escreveu ao sabor do tempo e enquanto o tempo deixou, numa coerente e consequente atitude de entender que o mais fundamental é escrever e só depois se impõe o acto e o gosto de publicar.
Mas devo ainda declarar que, nessa sua singular criação literária. o autor de Inclinações Pontuais norteou-se, no bem e no mal da sua vocação de escritor, pelo princípio de saber que a razão, o conhecimento ou a inspiração se erguem como elos da mesma cadeia que quase se não podem nem devem distinguir, e assim não faz muito sentido falar do tão estafado problema do conteúdo e da forma ou se uma obra literária deve ter ou não um espírito de "mensagem". Ter sido escritor foi talvez uma atitude do meio e das circunstâncias em que Arsénio Mota consolidou uma ampla obra literária, com mais ou menos ventos de feição, mas também se sabe que escrever é um acto sério e perigoso, não por sê-lo verdadeiramente, e antes pela evidente carga de sofrimento ou angústia que conduz ao acto da escrita sempre feito em solidão e em silêncio. Armazenando todas as  próprias vivências no museu do sótão da sua longa vida, o escritor viveu no seu tempo e quando se dispôs à escrita, sem saber muitas vezes a razão objectiva de o fazer, começou então a sua luta, reconstruiu as imagens do mundo noutras imagens de um mundo interior, debateu-se com os problemas que surgiram no espírito ou nas imagens de pessoas, coisas e lugares que de súbito chegaram à superfície da memória e do tempo como forma  pessoal de redenção ou de condenação.
E assim as palavras se encadearam umas nas outras, em estranha metamorfose, porque foi nesse processo que a emoção se impôs à inteligência e tudo fez caldear em mil pormenores para construir a imagem real por fora do que é vivo e real por dentro. Mas, no acto de a escrita se arvorar como a atitude primordial de expressão no que existe de mais profundo e sincero num escritor, direi pois que não existe um tempo natural para a realização de uma obra literária, porque um livro é sempre e acima de tudo o acto de contar uma história, que pode debruçar-se no tempo de infância, ou partir de um desgosto de amor ou ser a aventura de uma qualquer personagem, mas também se revela como forma de povoar a solidão essencial dos homens ou desvendar todas as suas angústias e inquietações. Sabemos que sempre foi assim.  Ontem e hoje. E pelo acto da escrita se pode, reconstruir o universo de um escritor e decifrar pelos seus livros as diferentes constelações ou inquirições que sempre o orientaram
Mas, por ser o acto de escrever forma de conhecimento do mundo e da vida, devo ainda repetir, servindo-me de uma fórmula de Sartre aplicada à literatura, que o verdadeiro sentido de uma obra se determina, no fim de contas, na atitude sempre prosseguida de se querer mostrar, demonstrar, desmistificar e dissolver todos os mitos e feitiços num banho de ácido crítico, sem perder de vista os elementos humanos e sociais com que se alimenta ou consolida toda a escrita, seja de forma explícita, directa ou imediatista, seja outras vezes apenas sugerida ou poetizada na brevidade dos próprios textos que se escrevem. Por isso repito que desde sempre Arsénio Mota escreveu os seus livros contra o próprio "sistema" (anterior e vigente, claro), sempre contra, porque essa foi a sua posição assumida como forma de intervenção cultural manifestada em diferentes planos. E, no acto de se celebrar os cinquenta anos de escrita de Arsénio Mota e reconhecer os seus diferentes géneros de realização, dizer que a sua obra se define em níveis de  clara afirmação pessoal, mas também se revela como sentido e forma de por uma espécie de ?apostolado? literário ser hoje entendida na visão própria de encarar a vida e o mundo e assim a literatura lhe serviu como realização de sonhos e projectos trazidos de muito longe. Por isso, no modo firme de ter espalhado algumas pedras no seu caminho ainda na confirmada razão cartesiana de que ?nasci, logo escrevo?, talvez seja suficiente para justificar a edição deste livro -  uma espécie de memória descritiva de um itinerário intelectual tão singular e coerente.
Por último, repetir ou sublinhar ainda que ser escritor hoje em Portugal, como  sempre foi ao longo dos tempos, é ser um artífice que maneja ou se entende com as palavras, emoções, ideias e sentimentos, mas que não tem, não pode nem deve ter, um estatuto diferente ou privilegiado de qualquer outra arte ou ofício, seja o de alvenel ou copista, calafate ou entalhador, carpinteiro ou lenhador. E assim creio que Arsénio Mota todos os dias se orienta pela sua estrela boreal como marinheiro de águas calmas, porque não se pode dar ao luxo de perder esse rumo ou exercer outro ofício no acto de escrever que não seja o de subverter  a normalidade mais normal, isto é,, a de inverter o sentido de todas as coisas, pessoas e lugares que povoam as páginas dos seus livros e histórias de encantar como no modo sentido e comovido de sempre ter a nostalgia do passado e das gentes da sua Bairrada natal, que é essa mesma, creio, de que falam os poetas quando dizem ter "saudades do futuro". Mas por mim sei, no convívio e atenção de muitos anos com Arsénio Mota, que de todo essa intenção se pôde cumprir e, pelo desejo sincero desse empenhamento, ambos sabemos em consciência e na nobilíssima visão de Cesariny que 

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come..


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 149
Ano 14, Outubro 2005

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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