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Memórias da infância no jongo: histórias de um tambu no paiol de milho

Esta é uma das muitas histórias que ouvimos ao longo da pesquisa. Histórias que sugerem a criança como sujeito da construção de seu conhecimento, promotora de táticas  para burlar o poder estabelecido e se apropriar de uma prática que não lhe era permitida.

O jongo (ou caxambu, ou tambu) é uma prática cultural afro-brasileira ? uma dança/música/festa popular que segundo os estudiosos serviu como forma de socialização das populações banto que foram trazidas para o Brasil no período escravista. Como a rota do tráfico fez com que grande parte desse grupo étnico fosse alocada no sudeste do país, dança-se jongo hoje basicamente nessa região.
Os jongueiros adultos contam que as crianças por muito tempo não puderam participar das rodas do jongo em função da sua falta de maturidade para lidar com os encantamentos inerentes à prática e o aspecto religioso presente nas rodas formadas nos terreiros, rodas nas quais os jongueiros dançavam e entoavam os pontos até o amanhecer. Ali somente os adultos podiam entrar, ao menos oficialmente.
Contemporaneamente, grupos de jongo do Estado do Rio de Janeiro ? pelo menos  o Grupo Jongo da Serrinha, em Madureira, subúrbio carioca; o da Comunidade Negra de São José da Serra, em Valença; o de Miracema e de Pinheiral (estes três últimos localizados no interior do estado do Rio de Janeiro) - contam com a participação de crianças.(1)
Embora os discursos dos jongueiros mais antigos afirmem a interdição da criança na prática durante muito tempo, os resultados de uma pesquisa realizada por mim ? junto ao Grupo Cultural Jongo da Serrinha e à Comunidade Negra de São José da Serra  ? revelam que mesmo proibidas de participar das rodas, as crianças nesses contextos construíam táticas, como diria Certeau(2) que antecipavam sua iniciação na prática .
Toninho Canecão, líder da Comunidade Negra de São José da Serra, conta como as crianças suas contemporâneas aprendiam a tocar o tambu(3) . Ele narra que na sua infância o instrumento ficava guardado no paiol de milho e que ele, as irmãs e o irmão, aproveitavam a distração dos adultos para ?bater? o instrumento às escondidas. Foi dessa maneira, afirma,  que sua irmã Teresinha ? hoje líder espiritual da comunidade e merendeira da escola municipal local ? aprendeu a tocar.
Esta é uma das muitas histórias que ouvimos ao longo da pesquisa. Histórias que sugerem a criança como sujeito da construção de seu conhecimento, promotora de táticas  para burlar o poder estabelecido e se apropriar de uma prática que não lhe era permitida. Mais ainda, esta e outras histórias demonstram como a criança sempre esteve presente no jongo, aí aprendendo, mesmo que os discursos sobre ela não dessem conta deste fato, mesmo estando invisível ali.

Notas:

  1. Na Serrinha existe uma escola de jongo que ensina a dança e os pontos para as crianças, na cidade de Miracema as crianças aprendem jongo com o filho de Aparecida Ratinho, dona do jongo local. Em Pinheiral a Secretaria de Cultura do município tem um projeto para ensinar jongo para as crianças.
  2. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.
  3. O tambu é um dos instrumentos de percussão utilizados no jongo. Ele faz a marcação do ritmo e em alguns lugares é chamado também de caxambu.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mailsa Carla Passos
Doutora em Educação pela PUC-Rio; Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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