Página  >  Edições  >  N.º 148  >  Mingus improvisa com Cassavetes

Mingus improvisa com Cassavetes

Aos amig@s que deixei
na Soares dos Reis

A cena passou-se num dia de Outubro de 1958, num estúdio de gravação em Nova Iorque. Charles Mingus estava lá acompanhado do seu grupo habitual, cujo principal solista era o sax alto Shafi Hadi, para registar a música de ?Shadows?, um filme  experimental realizado por um jovem entusiasta e entusiasmado, John Cassavetes. Mingus tinha-se feito notar, alguns meses antes, com ?Pithecantropus Erectus?, um disco selvagem e urbano, na companhia de outro saxofonista, Jackie Mc Lean, e actuava regularmente no Café Bohemia, um clube situado em plena Village, o bairro onde vivia. Fazia parte daquele grupo de músicos que sacudiam o pequeno mundo do jazz, tanto pela sua música, que tinha frequentemente acentos libertários, como pelas tomadas de posição políticas que não transigiam nas questões raciais. Cassavetes, quanto a ele, era um actor fantástico, visto como um sucessor de James Dean, e decidiu de uma maneira brutal passar à realização. O seu filme tinha sido produzido e rodado em condições pouco ortodoxas, e a primeira vez que o contrabaixista o viu foi na mesa de montagem e não lhe pareceu nada um dos filmes que se faziam nos estúdios da Costa Oeste. Cassavetes já tinha sondado Miles Davis, mas o trompetista tinha assinado contrato com a Columbia, e o realizador acabou então por preferir Charles Mingus, esse músico bizarro, esse improvisador imprevisível de quem lhe tinham dito muito bem e cuja radicalidade pura e dura convinha melhor a ?Shadows?.
Para a primeira sessão de gravação, Mingus apenas tinha podido escrever dois minutos e meio de música. O contrabaixista tinha frequentado a Julian School e tinha prevenido o realizador que tinha a intenção de trabalhar muito seriamente, isto é, escrever cada nota, cada inflexão que acompanharia as imagens. Cassavetes ficou um pouco aborrecido pois não gostava de coisas muito premeditadas. Enquanto os músicos se instalavam, lançou-lhes o desafio: ?Vá lá, Charlie! Vocês são capazes de improvisar, são formidáveis quando improvisam, podem improvisar a partir dos temas que já têm...? Mingus, teimoso e orgulhoso, respondeu-lhe: ?Não, não podemos fazer isso. Impossível. Nós somos artistas! É preciso que isto seja escrito.É uma bela música, man.? Seguiu-se uma conversa agitada onde um tentava convencer o outro. Cassavetes persuadiu-o de que a improvisação musical era o que convinha ao seu filme, pois tinha sido em parte improvisado pelos actores e técnicos. Mingus, quanto a ele, não saía da sua posição de compositor de música séria e não suportava que lhe ditassem a sua conduta. Finalmente, foi encontrado um compromisso entre os dois homens. Os músicos começaram a tocar a parte da música que estava escrita e rapidamente começaram a improvisar, em directo sobre as imagens que passavam, como se estivessem no clube. Mingus no baixo e Shafi Hadi no sax alto dialogam sobre as deambulações de Benny pelas ruas de Nova Iorque. Registaram assim uma parte da música de ?Shadows?. Outras sessões se seguiriam. Uma cumplicidade instalou-se entre os dois homens, que iriam por vezes comer gelados ou beber uns copos entre sessões, tudo pontuado pelos famosos acessos de cólera de Mingus e as visitas da sua amiga, a baronesa Nica de Koenigswater, mecenas dos jazzmen modernos, Charlie Parker e até Thelonius Monk. Shafi Hadi voltará sozinho para improvisar um solo.
Mingus revisitaria o cinema duas vezes - em 1962, em Londres, para a música de ?All Night Long?, depois em 1976, para ?Todo Modo? de Ellio Petri - mas sem reencontrar a mesma espontaneidade nem a mesma felicidade de expressão. Cassavetes continuaria a interessar-se pelo jazz, tanto para a série ?Johnny Staccato?, na qual era protagonista e por vezes realizador, no princípio dos anos 60, como para o seu segundo filme , ?Too Late Blues?, que põe em cena um grupo de jazz branco, muito West Coast, e cuja banda sonora é interpretada mais tradicionalmente por Shelley Manne, Red Mitchell, Jimmy Rowles e Benny Carter...mas Cassavetes e Mingus não esqueceram de certeza que nessa tarde, um pouco por acaso e quase sem querer, inventaram, sob o signo da improvisação, uma aliança desconhecida entre algumas notas de música inéditas e algumas imagens insolitamente novas.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo