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O Mundo do Secundário, esse desconhecido [II]

Na nossa última colaboração (cf.  A Página n.º 146, Junho 2005), deixámos aqui algumas notas colhidas ao longo dum projecto de investigação em curso no âmbito do Ensino Secundário (Projecto JOVALES). Sumariando, dizíamos que,  face à mensagem escolar, o comportamento  da actual população do Secundário pode considerar-se regido por três grandes princípios  de acção: o princípio da identificação, o princípio da experimentação e o princípio da estranheza. Retomamos hoje essa problemática, como então prometíamos.
Lembramos que a racionalidade subjacente ao estabelecimento daqueles três princípios pretende-se fundada num triplo postulado: o primeiro corresponderia à afirmação da missão socio-histórica da escola que se define pela manutenção e promoção da cultura  dominante e pela integração das  camadas ascendentes nessa mesma cultura. Nos termos deste postulado, a vida escolar tem uma forma própria de se  desenvolver, caracterizada essencialmente pela indiferença aos valores do quotidiano, à experiência pessoal, às diferenças socio-culturais do mundo dos alunos, enfim, ao que se vem designando por mundo da vida.
O segundo postulado, que pretende fundar o princípio da  experimentação, corresponderia a uma forma escolar estrategicamente híbrida, aberta provisoriamente às contradições, derivadas da generalização do acesso à escola e da consequente massificação escolar que tornaria inviável uma forma pura de escolarização.
Os instrumentos formais dessa estratégia, fundamentalmente polarizados pela ideia de pedagogia de projecto, pretendem preservar alguma autonomia do aluno, numa lógica inevitavelmente equívoca: - por um lado, admitindo a existência das  diferenças e das subjectividade, tanto culturais, como biopsicológicas e projectuais  e, nesse sentido, favorável à construção e desenvolvimento  dum itinerário pessoal; e, por outro, impondo  e consagrando uma cultura escolar de responsabilização pessoal e familiar susceptível de ser invocada como base do mérito ou do demérito reveladores da qualidade  do trabalho  escolar.
É este carácter equívoco do Projecto, enquanto instrumento de gestão das contradições do quotidiano escolar, que torna o processo de  experimentação das vivências escolares num exercício de tensão permanente entre a responsabilidade imputada (e auto-assumida) e as potencialidades próprias; tensão essa que será tanto mais elevada quanto mais volúvel for o fluxo das interacções socio-culturais e escolares que integram o contexto da experimentação social e escolar e  quanto  mais frágil for o suporte  patrimonial e familiar de referência e menos sólido for  o dispositivo socio-afectivo de apoio.
Daí que o processo de experimentação que, anteriormente, interpretávamos como um tempo de aprendizagem e de passagem da condição de jovem à de aluno, sobretudo no caso daqueles jovens que não dispõem de referências escolares geracionalmente estabelecidas, seja um tempo muito marcada pela instabilidade e pela busca de  figuras significativas que exerçam uma função tutelar para o quotidiano escolar que ainda não está pragmaticamente ocupado. O tempo escolar  ainda não é encarado como possuindo um sentido próprio em nome do futuro. É apenas um tempo dos ?deveres todos?. Registe-se este desabafo  que faz  parte do nosso repertório de entrevistas:
?...Quando o dia acabou, ou seja, quando já fiz os meus deveres todos, a depois começo a pensar em tudo o que fiz, em tudo o que podia ter feito...e começo a pensar  ?Fogo!? è sempre a mesma coisa?..
Importa dizer que este processo de experimentação vem-se revelando crescentemente problemático para  os jovens do Ensino Secundário, se tivermos em conta os últimos  dez anos. Na verdade, o contexto de experimentação, quer intra, quer extra-escola, acumula factores de agressividade e  de risco, a que acresce um discurso politico-pedagógico pseudo-securizante que, valorizando retoricamente a autonomia e a capacidade dos jovens, mais os expõe objectivamente  à competição, ao individualismo  e à auto-culpabilização.
Uma das formas de reagir defensivamente a este risco é justamente adoptar o princípio da estranheza que consiste em não se reconhecer (e não ser reconhecido) na mensagem cognitiva da escola e valorizar, antes,  as formas de convívio  e as condições materiais  e sociais de acolhimento, o que explicaria, segundo Machado Pais o paradoxo de que ?os jovens mostram-se satisfeitos com uma escola que os reprova?  (Jovens Portugueses  de Hoje. Oeiras: Celta Editora, 1998.


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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