Página  >  Edições  >  N.º 148  >  O Beresina europeu

O Beresina europeu

A GUERRA ECONÓMICA

O drama é que se viu e está a ver-se! Ao escreverem esta frase, os autores estão conscientes do crime que cometem ao atacarem uma vaca sagrada, com todos os riscos de excomunhão que tal sacrilégio os faz correr. É que com a Europa não se brin­ca. É um assunto sério, mais do que isso, é uma ideia, melhor ainda, um sonho e, além disso, acessível. Criticar a Europa, pôr em causa a maneira como foi construída, fazer perguntas sobre o significado das decisões que são tomadas em seu nome é cuspir no rosto dos «pais fundadores», é lançar por terra quarenta anos de esforços ininterruptos, é destruir a esperança. «Santa, santa, santa é a Europa», cantam os seus adoradores, e ai dos descrentes que duvidam e ousam pensar que também ela escolheu o «partido da guerra». Mas é esse o caso, e desde o começo.
E as provas não faltam, a começar pelo famoso Acto Único, que, entre outras coisas, liberaliza totalmente a circulação de capitais, provocando não uma tributação da poupança, como ini­cialmente estava previsto, mas uma efectiva corrida à desfiscali­zação, para grande felicidade dos que vivem dos rendimentos. O «pacto de estabilidade» que acompanhará o nascimento do euro também não está nada mal, acorrentando por um período de tempo indeterminado a política macro-económica da Europa, sob o olhar sobranceiro de um banco central «independente» (de quem?), havendo evidentemente poucas hipóteses de vir a ser dirigido por um émulo de Alan Greenspan.
Muito simplesmente, basta ouvir ou ler as afirmações dos responsáveis europeus para constatarmos que o seu objectivo não é tentar preservar um modelo original mas de facto conduzir uma «guerra económica», começando pela guerra civil. Tal como está a ser construída, a Europa não põe em causa a mundialização «selvagem». Pelo contrário, participa nela, nem que seja através da Organização Mundial do Comércio - e todos sabemos bem os interesses que, em nome da liberalização do comércio, esta defende. Da mesma forma, a Europa não parece nada tentada a resistir ao «totalitarismo» (sic, Alain Minc) dos mercados. Prefere seduzi-los. É também essa mesma Europa que, certa­mente em nome da sua neutralidade ideológica, põe em causa a própria noção de serviço público e faz das privatizações uma pri­oridade absoluta. É, finalmente, essa mesma Europa que, grave­mente, se interroga quanto à rigidez do mercado de trabalho de que o velho continente «sofre» e quanto ao peso insuportável - ­claro, insuportável - da protecção social colectiva. Daí a pensar­-se que a Europa de Maastricht se tornou um cavalo de Tróia que permitirá liquidar as poucas ilhotas de resistência que ainda travam o processo de globalização só vai, um pequeno passo.
Escrever isto é constatar uma deriva sobre a qual podemos interrogar-nos aonde irá parar. Não é injuriar os «pais fun­dadores» (já agora, imagine-se a cara que fariam ao descobrir o que os seus sucessores fizeram do bebé!). Também não é con­denar a ideia de uma união europeia nascida imediatamente após a Segunda Guerra Mundial e que era então portadora de esperan­ças reais. Com efeito, é verdade que uma Europa unida seria capaz de construir um modelo original. É igualmente verdade que não se prosseguiu nessa direcção quando as coisas se tornaram mais difíceis devido à aceleração da mundialização, ao crescente poder dos mercados financeiros e à emergência das tecnologias da comunicação, sem esquecer o colapso do comunismo. De quem é a culpa? «Dos tecnocratas de Bruxelas, a quem os políti­cos soltaram muito as rédeas», clamam alguns. Notória imbecili­dade, que apenas permitiu que se evitasse o único debate válido, a saber o que diz respeito às vantagens e aos inconvenientes do sistema capitalista.
Mais uma obscenidade. É que o capitalismo beneficia hoje do mesmo estatuto que a Europa: o de vaca sagrada. Não esmagou ele o seu inimigo comunista, a justo título desprezado? Não demonstrou ele soberbamente a sua flexibilidade e a sua capaci­dade de adaptação? E, ao fazê-lo não terá ele adquirido um pas­saporte para a eternidade? Um regresso às fontes, de certa forma o «fim da história» ao contrário. Mais: interrogarmo-nos sobre o capitalismo, até mesmo pôr em causa a sua perene legitimidade, não será o mesmo que confessarmo-nos saudosos do «paraíso socialista»? De qualquer forma, a questão nunca é abordada, pelo menos frontalmente, e os críticos mais audaciosos contentam-se em referir os danos causados pelo «pancapitalismo» ou pelo «capitalismo selvagem». Estes esperam certamente domesticar a «besta», como outrora aconteceu, quando esta sofria a dupla pressão das reivindicações sociais, que na época pareciam justi­ficadas e «modernas», e da atracção exercida pela «pátria dos tra­balhadores». Tendo esta dupla pressão desaparecido, devido à explosão do desemprego e ao colapso de um modelo tão ineficaz quanto maldito porque tirânico, desejamos muitas felicidades aos aprendizes de domador! Mas nunca se sabe, talvez a curto ou médio prazo se acabe por conseguir controlar as multinacionais e os mercados e fazer recuar todas as formas de intervenção colec­tiva, a começar pela do Estado, sem se pôr em causa os próprios fundamentos do capitalismo! Por enquanto, este prospera e ali­menta-se da guerra civil mundial com as cumplicidade dos seus zelosos ou resignados servidores!


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

Philippe Labarde
Jornalista. Jornal Le Monde.
Bernard Maris
Economista. Professor universitário. Paris.
Philippe Labarde
Jornalista. Jornal Le Monde.
Bernard Maris
Economista. Professor universitário. Paris.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo