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Diotima

O nascimento de uma criança é coisa para celebrar, neste tempo de celebração da morte, em Madrid, Cabul, Bagdad, Londres...
Um amigo sensível descreveu o nascimento da sua primeira filha, numa mensagem de correio electrónico. O Marcos apercebeu-se da emoção que assaltou este avô piegas, enquanto lia. E não despegou os olhos dos meus olhos molhados. Não houve solução, senão ler a mensagem de modo que ele a ouvisse. Como a entendeu eu não sei. Sei que a escutou, muito atento, até ao final. Depois, voltou para as suas brincadeiras. Não manifestou estranheza, talvez porque a beleza seja sua companheira habitual.
Não consigo imaginar o alvoroço de alma do Amândio, perante a visão de uma criança rompendo um ventre de mãe. Nem esse sentir caberá em palavras. Mas ouso transcrever algumas das escritas pelo meu amigo, assumindo o pecado da indiscrição, para poder partilhar o que sinto: Quando vi a Diotima sair da mãe, a minha primeira impressão foi a de um gesto repetido mil vezes, algo muito para além de uma vida. Senti-me um deus humilde e criador. Estava em contacto com a vida e também com os mortos. Olhei a janela, e a cidade estava envolta num vermelho como só em Roma, e só quando morre um imperador. A Lua Cheia erguia-se dominadora entre os sinais do céu. E tudo começa.
O meu amigo e a mãe da Diotima são actores de teatro. Representam como quem respira. São dois seres que geram filhos com o mesmo amor de que é feita a sua arte. São inteiros e puros. Criança que, no útero, esteve atenta à doce música das suas palavras, criança que vai ser embalada em braços que geram beleza, nasce abençoada. Faz-se poeta ao nascer.
Quando outras crianças-poetas (é redundante, mas é propositada a justaposição) quiseram estudar a ?cor das vogais?, o trabalho culminou em contributos para um belo livro, que dá pelo nome de ?As palavras são como as cerejas?. Amiúde, leio para o Marcos alguns poemas desse livro, escritos pelos meninos da Ponte: Esta palavra é amor / Aquela palavra é irmão / Esta palavra é espera / Aquela palavra é dor / Esta palavra é silêncio / Aquela palavra é beijo / Esta palavra é o pão / Aquela palavra é o linho / Cada palavra é um gesto / Cada gesto uma palavra / São a vida estas palavras.
Estes versos aconteceram, como acontece a madrugada, no quotidiano de uma escola, onde a alegria e a tristeza ? matéria de que é feita a poesia ? andam a par. E, quando se pediu às crianças uma definição de escola, elas escreveram: a minha escola é como plantar um sonho no jardim das letras, é como chorar mil palavras num rio de lágrimas.
A alegria e a tristeza das crianças são de natureza diferente do que um adulto sente. E só os adultos-poetas têm acesso ao sentir do mundo da infância. Os poetas e também os pais, os avós. Pois àqueles que forem (que forem mesmo!) pais e avós, ajusta-se o que Goethe escreveu: A idade não nos torna adultos. Não! Faz de nós crianças de verdade.
O impulso poético revela-se e ganha raízes, se o aprender a ler e a escrever não for repetir carreirinhas de letras, mas um exercício de canseira e paixão. A poesia consubstancia-se na palavra escrita, mas não só ? inscreve-se no mais íntimo acto de um educador. Numa escola onde se respire poesia ? lá volto a ser redundante, pois só haverá escola onde se respire poesia ? a toda a hora, se reinventa a palavra: ?Gostaria de ser astronauta, para espiar as estrelas. Ser feliz é poder acampar nas nuvens de todas as cores. Em cada cor há um sentimento. Quando fecho os olhos, as cores estão lá. Eu vejo-as. Eu sinto-as. ?Sinto tanta coisa cá dentro do peito. Eu acho que podia fazer um poema. Mas não consigo rimar?.
Se a Diana não se apercebe de que está a inventar poesia que não rima, o Dario, moço-poeta de oito anos de idade, está consciente do seu dom. Numa manhã de escola, talvez inspirado no verde das árvores que o sol de Primavera sublinhava, foi um pequeno Lorca: O amor é verde / Doce como pipocas / Mas com açúcar a dobrar / Cheira a carvalho / E é mais quente que um vulcão a fervilhar / Tem o som de qualquer coisa / De que eu não posso falar /Move-se como um caracol / Pois é leve / E faz-me sentir feliz.
Voltemos à ?cor das vogais?, evocando uma história antiga. Aquela em que um miúdo pergunta ao pai:
Pai, qual é a cor do A?
Não sei, meu filho.
E a todas as perguntas que o filho lhe faz o pai vai respondendo não saber?
Pai, não te importas que eu continue a fazer perguntas, pois não?
Não, meu filho. Se assim não fosse, como te poderia ensinar todas as coisas?
Assim vejo o Amândio, neste momento, falando com Diotima, num enleado olhar calado que tudo diz. Pois nem só de palavras vive a poesia. Também é feita da sabedoria dos silêncios. Sobre eles se constrói, tal como a música. E como dói encontrar adultos que não sabem que só a poesia é real!...


  
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Edição:

N.º 148
Ano 14, Agosto/Setembro 2005

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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