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Um novo absolutismo

Sob o ponto de vista da fundamentação filosófica, é da estruturação do "eu" que depende o conhecimento. A relação sujeito/objecto, enquanto processo de revelação do concreto, propõe inúmeras variantes que permitem não só especulação estritamente filosófica mas, também, reinterpretação da História e do fenómeno social.
Uma compreensão do mundo circundante, exige uma reflexão sobre a natureza do "eu", enquanto sujeito projectado no real, de espírito conhecedor, perceptivo e racionalizante. Deste esforço necessariamente introspectivo, depende a sustentabilidade do conhecimento e o desencadear de um processo de descoberta, sem a acção sempre corrosiva da insegurança.
Desde o "cogito ergo sun" de Descartes ? penso logo existo ? até ao "cogitum cogitatum" ? a consciência de si, auto-reflexiva ? o mundo surge matizado, o que levanta uma questão premente e muito actual: em que medida a realidade que percepciono é a mesma do Outro que igualmente conhece? Existe uma verdade, ou várias verdades? Entramos, assim, nas questões do absoluto e do relativo, do objectivo e do subjectivo, do sujeito e do objecto. Relações sobre as quais os filósofos reflectem e os historiadores se sustentam para abordar um fenómeno histórico.
Para os pragmáticos e tecnicistas, estes problemas são de somenos importância, argumentando com o progresso tecnológico, o utilitarismo da investigação científica e, no âmbito das ciências humanas e sociais, defendendo o fim da História protagonizado pelos triunfos do liberalismo e do capitalismo, enquanto verdades, sublinhe-se, absolutas.
Os liberais de hoje, partem da estruturação de um "eu" assente nestas certezas absolutas, a saber: o individualismo como filosofia, o mercado como solução para os problemas económico-sociais, o demo-liberalismo como regime político. Deste ideário liberal saem as soluções para os grandes problemas da humanidade, cuja doutrina não contestam, tão somente variando em termos de metodologias. Por exemplo, a prosperidade em África só será efectiva quando aí se aplicarem as regras do capitalismo. A premissa parte de uma ideia absoluta: a virtualidade do neoliberalismo na recuperação económica africana. Uma questão de anos e boas políticas chegariam para atingir um equilíbrio sócio-económico aceitável nesse continente. (Acrescentaria eu, uma questão de séculos, não contando com as anomalias intrínsecas ao capitalismo e que todos reconhecem).
Outro exemplo é o da presença ocidental no Iraque. Os seus defensores sustentam-se no conceito demo-liberal, como dado absoluto de fórmula de regime político.
Vivemos, pois, uma época em que a análise do factor histórico parte de conceitos (preconceitos) absolutos, excluindo reinterpretações revolucionárias que atinjam na estrutura, a certeza metafísica do processo de conhecimento liberal. Como o absoluto remete para a marginalidade tudo o que o negue (em último caso, o absoluto não conhece negação), o neoliberalismo assume-se, (aparentemente de forma paradoxal), como um absolutismo. Admitindo "nuances", mas só na medida em que justifiquem a sua suposta benignidade. O risco é o início do terceiro milénio sugerir, mais configuradamente e não só em mero esboço, o aparecimento do neofascismo.


  
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Paulo Frederico F. Gonçalves
Professor, Porto
Paulo Frederico F. Gonçalves
Professor, Porto

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