Página  >  Edições  >  N.º 147  >  Carta semi-aberta aos meus alunos com muitas certezas e aromas de férias

Carta semi-aberta aos meus alunos com muitas certezas e aromas de férias

Confesso-vos que eu, professor de Português, não sei como começar esta carta. Pela data, ou deverei ser mais criativo, como costumo sugerir-vos?

Porto, 14 de Junho de 2005.
Aprendi muito cedo, com toda uma geração de professores, a olhar-vos nos olhos límpidos arremessados ao futuro. Percorri caminhos árduos, lutas ganhas e outras tresmalhadas ou alcançadas mais lentamente, em defesa de uma Escola que vos dissesse algo que fosse sentido por vós. Mas tenho consciência de que viveis este drama, a que cada vez vos acomodam mais, de estar nela e não estar, com ela e sem ela.
Ontem foi o funeral de Vasco Gonçalves. Acho que nenhum de vocês sabia quem era. Talvez uma vaga ideia. E no entanto, a sua voz empoleirada em palanques improvisados em fábricas, ressoando na esperança de milhares de operários, permanece ainda na memória colectiva de todo um povo; um primeiro-ministro que entendeu o sofrimento dos trabalhadores; que não gostaria de ler no Expresso que o número de milionários aumentou recentemente, neste país de gente pobre. Muitos hão-de falar-vos dele como um louco; não interessa aqui se concordamos ou não com tudo o que fez; descobriu-se que é possível os trabalhadores interessarem-se e opinarem sobre o que fazem em termos de gestão, ou que as escolas se podem organizar democraticamente. Esta cultura de participação, de implicação (comissões de moradores, de trabalhadores?), tem-se perdido tanto!... Por isso conhecemos tão pouco da nossa rua e vós não sabeis quem foi o ?companheiro Vasco?. Por isso vos digo tantas vezes que a vossa opinião vale muito, quando avaliamos; que ajuizar e estar envolvido é coisa séria. E esta liberdade de expressão é uma riqueza sem preço pela qual tantos combateram.
Álvaro Cunhal morreu também, ontem. Ouvistes falar dele, mas não muito, imagino. E a sua figura, na História de Portugal do século XX, é fundamental. Pelo conhecimento, pelo saber afirmar com um sorriso experiente "Olhe que não!..." quando tentavam acusá-lo de querer levar o país para um regime ditatorial. Não, não se tratava só de um líder partidário. Foi um herói, uma figura carismática que todos os portugueses da minha e de outras gerações veneraram, amando-o ou odiando-o, mas agradecendo a sua força de alma, a sua capacidade de luta, a sua persistência na defesa de um ideal. Quando ele entrou para a Faculdade, aí pelos anos 30, foi também criada a primeira polícia política do Estado(1). O seu percurso de vida e o do seu partido são hoje um património da nossa cultura, da nossa forma de estar na vida: a clandestinidade e o exílio para se poder lutar contra a ditadura de Salazar, uma das monstruosidades da história da Europa do séc. XX. E essa excelência ninguém lhe poderá jamais negar. Não basta dizermos que não somos comunistas, apontar erros dos sistemas políticos, ou isto ou aquilo. É preciso reconhecer que nada seria neste país como hoje é: a liberdade é um bem sagrado, mesmo aqui na escola, onde tantas vezes nos sentimos menos bem. E devemo-la à coragem de homens como este. Por isso, posso convidar-vos a dizer, ou a pensar comigo: Obrigado pela Liberdade, Álvaro!
Ontem, ainda passei, em homenagem, no velório de Eugénio de Andrade. Ouvistes falar deste poeta capaz de arquitectar música e luz e de erigir aromas e sabores com palavras simples como tangerinas, embebidas numa singeleza comprometedora da visão que temos do Mundo que anda aqui ao nosso lado. Estudastes o poeta, é verdade. Não sei se vos mostraram a beleza que está nas e para além das palavras, como se a poesia se fizesse de silêncios conjugados com o que parece que se diz. Receio que a escola não vos transmita a grandiosidade da poesia!  ?Como se recusa o amor??(2)
Destes três Homens assim ceifados de entre nós no fim da Primavera ficam memórias que devereis aprender a comemorar na Escola, sem tabus nem subterfúgios que vos tornem ignorantes.
Para que a Escola possa continuar a ter o seu papel na vossa formação. Para que um cidadão português, num dia como este, não veja os noticiários da meia-noite, nos canais de TV privados, abrirem com a notícia de Michael Jackson a ser ilibado das acusações de pedofilia; que eu por mim, até desconfio? Desconfio que a Escola, um dia, não obrigue esta gente dos media a saber que somos um povo culto, com memórias, decoro e dignidade.
Boas férias, meus caros!

(1) PVDE - Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, depois PIDE - Polícia de Intervenção e Defesa Do Estado
(2) ?Os sulcos da sede?, Eugénio de Andrade


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário
Rafael Tormenta
Professor do Ensino Secundário

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo