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Quatro portuguesas morrem agredidas mensalmente

Violência contra a mulher

A violência contra a mulher é um problema que marca todas as sociedades e culturas do mundo e parece não ter uma solução fácil à vista. Organizações internacionais como as Nações Unidas têm vindo a dedicar-lhe uma atenção especial e realizado um esforço no sentido de criar mecanismos legais que protejam mais eficazmente a mulher.
No plano interno, este é também um tema que merece uma preocupação crescente, nomeadamente em Portugal, onde morrem anualmente, em média, cerca de meia centena de mulheres vítimas de violência doméstica.
A Página elabora neste dossier um retrato da situação a nível internacional e nacional, divulga números e cruza depoimentos de alguns dos actores no terreno.

A violência contra a mulher é um problema que atinge, sem excepção, todas as sociedades e culturas humanas. Apesar de não existirem números concretos sobre a sua dimensão a nível internacional, as Nações Unidas calculam que ele atinja uma em cada três mulheres em todo o mundo e o Banco Mundial estima que ele esteja na origem de uma em cada cinco faltas ao trabalho. Para tentar perceber a verdadeira amplitude desta questão e as suas consequências sociais e económicas, a ONU convocou, em Abril deste ano, um grupo de trabalho encarregado de traçar um quadro global e apresentar medidas que possam ajudar a combatê-lo mais eficazmente.
Apesar de faltarem estatísticas que permitam ter uma ideia sustentada sobre o assunto, é sabido que uma das dimensões mais graves da violência exercida contra a mulher passa pelo tráfico destinado à exploração sexual (considerado um dos tipos de crime organizado com crescimento mais rápido), calculando-se que mais de 700 mil pessoas sejam anualmente envolvidas neste tipo de negócio ilegal. Além disso, a violência em forma de crime sexual torna-se hoje ainda mais preocupante pelo risco de contágio e de propagação do vírus da Sida, em particular nos países do terceiro mundo.
Outra das formas mais graves de violência contra a mulher é a sua crescente utilização em situações de conflito armado, onde são frequentemente incorporadas à força como soldados e objecto de abuso sexual, sendo também habitualmente um dos primeiros alvos de represálias em situações de ataque a populações civis. Em 2003, o Tribunal Especial da Serra Leoa, que julga os crimes de guerra cometidos naquele país durante a guerra civil, acrescentou o crime de ?casamento forçado? às acusações pendentes contra seis réus, julgando-o, pela primeira vez, como um crime contra a humanidade.
Apesar deste panorama desolador, tem-se assistido, particularmente na última década, ao aparecimento de novos mecanismos jurídicos internacionais que procuram enquadrar legalmente a questão e servir de base a uma acção mais concertada.
É o caso da Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, adoptada pela Assembleia-Geral da ONU em 1979, cujo número de Estados signatários se eleva actualmente a 174.
Em 1993, o mesmo órgão das Nações Unidas adoptou a Declaração para a Eliminação da Violência contra a Mulher, considerado um documento chave nesta matéria.
O protocolo relativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, que visa eliminar o tráfico de pessoas, em especial de mulheres e de crianças, entrou em vigor em Dezembro de 2003.
Em Julho desse mesmo ano, a União Africana aprovou um protocolo referente à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos sobre os direitos das mulheres em África, onde se exortava os Estados a tomarem medidas que garantam a prevenção, punição e erradicação de todas as formas de violência, abordando concretamente a questão de práticas como a mutilação genital, que afecta mais de 130 milhões de mulheres em todo o mundo.
Igualmente determinantes para a aprovação de novas formas de combate à violência e à discriminação contra as mulheres foram a IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, realizada em Pequim, em 1995, e a sessão extraordinária da Assembleia-Geral das Nações Unidas "Mulher 2000: Igualdade entre os Sexos, Desenvolvimento e Paz no Século XXI?.

No espaço europeu Portugal tem uma das taxas mais elevadas de violência contra a mulher

No espaço europeu, calcula-se que uma em cada cinco mulheres seja vítima de violência doméstica e o Conselho da Europa afirma que esta representa a maior causa de morte e invalidez entre as mulheres dos 16 aos 44 anos.
Portugal tem uma das taxas mais elevadas de violência contra a mulher na Europa. Cruzando os dados avançados pelas Organizações Não Governamentais (ONGs) que trabalham nesta área, sabe-se que uma em cada três é vítima de violência doméstica e uma em cada quatro sofre abusos sexuais às mãos do marido, companheiro ou familiar, estimando-se que apenas cerca de 1% apresente queixa. O mais grave, e inadmissível, porém, é o facto de em consequência destes actos de agressão morrerem, em média, quatro mulheres portuguesas por mês.
De acordo com números fornecidos pelo Ministério da Administração Interna, as denúncias de violência doméstica têm vindo a aumentar de forma crescente, com 11.162 queixas registadas em 2000, 12.697 em 2001, 14.071 em 2002 e 17.427 em 2003. Em 2004, as queixas junto da PSP e da GNR diminuíram relativamente ao ano anterior, tendo-se registado quase sete mil denúncias.
Tal decréscimo não significa, no entanto, uma diminuição do índice de violência doméstica, afirma João Lázaro, secretário-geral da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Assim, de acordo com este responsável, o fenómeno poderá ser explicado por ?um menor grau de confiança das vítimas no sistema judicial?, já que este nem sempre proporciona uma resposta adequada às pretensões e às expectativas quer das vítimas de violência doméstica quer das vítimas de crime em geral.
Outra das críticas apontadas por João Lázaro refere-se ao facto de o Estado ainda não ter conseguido criar uma estrutura em rede que desenvolva um trabalho integrado entre as diversas instituições que trabalham nesta área, nomeadamente no que se refere à oferta e à actividade dos centros de acolhimento, a maioria deles da iniciativa da sociedade civil.
?Existem cerca de trinta centros de acolhimento espalhados pelo país, mas além de não serem em número suficiente não está garantida a supervisão técnica do trabalho por eles realizado?, diz Lázaro.
No que se refere ao II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, iniciado em 2003 e com final previsto para 2006, coordenado pela Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (CIDM), João Lázaro considera que dele decorreram ?boas ideias? mas cuja concretização foi ineficaz.
?É um plano com um carácter muito estatal e, na prática, as ONG?s não participam directamente nele. Curiosamente, se há uma área que a sociedade civil conseguiu trazer para a agenda mediática e política foi precisamente a da violência doméstica?.
Em declarações à Página (ver pág. 37), a presidente da CIDM, Maria Amélia Paiva, rejeita estas criticas e considera que ?existe um trabalho conjunto com as organizações da sociedade civil? no sentido de se encontrarem soluções comuns para este problema.

Estudo revela perfil da violência contra a mulher

De acordo com as conclusões do Relatório Penélope ? conduzido em 2003 pela APAV, com o apoio da Comissão Europeia, cujo objectivo era traçar um quadro da violência doméstica nos países do sul da União Europeia (Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia) ? em Portugal não existe qualquer recolha e cruzamento sistematizado de dados estatísticos que permitam analisar mais detalhadamente a relação entre vítimas e agressores e o tipo de apoio proporcionado a ambas as partes.
Por outro lado, refere o mesmo documento, os estudos sobre esta matéria são escassos, muito recentes ? o que não permite ter uma visão temporalmente alargada sobre esta questão ? e abordam sobretudo a perspectiva da vítima e quase nunca a do agressor.
Um dos mais completos e pormenorizados será porventura o estudo ?Violência contra as Mulheres?, conduzido em 1995 por Nelson Lourenço, Manuel Lisboa e Elza Pais, que aborda a violência física, psicológica e sexual exercida sobre as mulheres portuguesas e onde se concluiu que a maioria (52,2%) tinha sido vítima de pelo menos um acto violento ao longo desse ano. A percentagem reduzia-se para 36% (uma em cada três) quando se considerava duas ou mais agressões em igual período, situação que, no entanto, evidencia uma continuidade nos actos de agressão.
De acordo com aquele estudo, a violência psicológica é a que está mais presente (50,7%), seguida pela violência sexual (28,1%) e pela violência física (6,7%). O estudo teve igualmente em conta a discriminação sócio-cultural sofrida pelas mulheres, que alcançou um valor de 14,1%.
Ainda segundo as conclusões deste trabalho, a violência física e psicológica ocorre maioritariamente em contexto doméstico, ao contrário da discriminação sócio-cultural, que tem lugar sobretudo no local de trabalho, e da violência sexual, exercida sobretudo em lugares públicos. A casa é o local onde se regista o maior número de actos de agressão (43%), seguido pelos locais públicos (34%) e pelos locais de trabalho (16%), sendo que 7% ocorre em outros locais.
Em recente entrevista ao Jornal de Notícias, Elza Pais, socióloga, co-autora do estudo e recém empossada como responsável pelo Grupo de Missão contra a Violência Doméstica, reconheceu que no nosso país cerca de 90% dos processos por este tipo de crime não são julgados e recusa a ideia de criar tribunais especiais para julgá-los, à semelhança do que sucede em Espanha. No entanto, admite Elza Pais, é necessário perceber se esta situação deriva da resolução dos próprios conflito ou se haverá outras razões que é ?urgente perceber?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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