DIZ-ME, EUGÉNIO
Os amigos mais próximos de Eugénio, poetas e ensaístas marcantes da cena literária portuguesa, liam comovidamente alguns dos seus poemas. Mas, de repente, ganhando coragem e erguendo a voz, notáveis anónimos, homens e mulheres, alguns muito velhos, outros muito jovens, levantavam a voz e liam. E ardiam.
Desde há algum tempo que deixara nas estantes os muitos livros de poesia de Eugénio de Andrade. Por vezes perguntava-me a razão de tal esquecimento, com o nítido sentimento de culpa de quem aparta de si o Belo ou o Justo, mutilando-se nesse mesmo acto. Dizia-me, então, que a música que Óscar Lopes cedo pressentira na poesia de Eugénio não se coadunava com a ansiedade e o ritmo frenético da vida que levo. E os livros iam ficando na estante. Estive ontem na vigília fúnebre de Eugénio na Cooperativa Árvore. Atentei nos pares de jovens namorados que iam chegando, quase timidamente, e nas flores que traziam, poucas e silvestres, sem pompa ou circunstância, mas certamente acabadas de colher. Os amigos mais próximos de Eugénio, poetas e ensaístas marcantes da cena literária portuguesa, liam comovidamente alguns dos seus poemas. Mas, de repente, ganhando coragem e erguendo a voz, notáveis anónimos, homens e mulheres, alguns muito velhos, outros muito jovens, levantavam a voz e liam. E ardiam. Poucos poetas terão sido tão vividos como Eugénio. Quantos dos seus versos não circularam nos lábios dos amantes; quantos não foram glosados, plagiados, copiados, retorcidos até à exaustão, oferecidos em aniversários, decorados em surdina, declamados. Este poeta do rigor ganhara o quotidiano mundano das alegrias e tristezas cidadãs. Como, outrora, na ocupação de Paris, os poemas de Prévert circulavam em cópias de mau papel. Mas Eugénio não era um poeta popular na classificação académica. Depurando o verso até ao osso, fazendo da economia do sentimento e da observação elementar regra espartana de selecção, atento à terra e aos elementos, a sua poesia, por vezes quase experimental, era tocada, todavia, por uma graça astral. E as palavras subiam até ao silêncio, essoutra música. Pobres as nossas existências destituídas do sono de uma maçã onde se espelha o rosto do poeta; deploráveis as vidas que se consomem no deve e haver das horas frenéticas, sem demorar nas dunas, sem a luz de um amor puro. Quem morre com o poeta, quem nos levou o oiro do dia? Mas havia esses pares de namorados que traziam flores silvestres, um pouco espantados, um pouco tímidos, de mãos dadas com o poeta.
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