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"Os valores éticos fundamentais dos educadores baseiam-se na proximidade e na responsabilidade"

Isabel Baptista em entrevista à Página

Doutorada em Filosofia da Educação pela Universidade de Letras da Universidade do Porto (FLUP), professora desde 1978 - com experiência profissional no 1º ciclo do Ensino Básico, no Ensino Secundário e na Escola do Magistério Primário do Porto -, Isabel Baptista encontra-se ligada ao Ensino Superior desde 1995.
Entre 1995/2002 exerceu funções na Universidade Portucalense, onde foi responsável pela coordenação de licenciatura de Educação Social. Desde 2003, exerce funções no Instituto de Educação no núcleo do Porto da Universidade Católica Portuguesa (UCP). Integra, na qualidade de membro fundador, o Gabinete de Filosofia de Educação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e a direcção do Sindicato dos Professores do Norte e do Conselho Nacional da Federação Nacional de Professores, Fenprof. É colaboradora regular de ?A Página da Educação? nas rubricas «CIDADE Educadora» e «ÉTICA e profissão docente»?.
Participa, ao longo de 2005, em diversos projectos de investigação-acção, dos quais se poderão destacar o projecto de intervenção comunitária «Trofa Comunidade de Aprendentes», sob a coordenação de Joaquim Azevedo, da UCP; o Programa Europeu «Social Ethics Project», coordenado por Sarah Banks, da Universidade de Durham. no Reino Unido; e o projecto «Educação e Direitos Humanos», uma parceria entre a Fundação Ciência e Tecnologia e a FLUP, sob a coordenação de Adalberto Dias de Carvalho.
Também em 2005, publica, em co-autoria com Adalberto Dias de Carvalho, da FLUP, ?Educação Social, fundamentos e estratégias?, pela Porto Editora; e, mais recentemente, ?Dar rosto ao futuro: a educação como compromisso ético?, prestes a ser lançado pela Profedições.
Nesta entrevista, Isabel Baptista esclarece-nos acerca de três conceitos que navegam habitualmente por fronteiras pouco definidas ? Ética, Moral e Deontologia -, salienta a importância da Ética docente como eixo fundamental da profissão e divulga o projecto ?Cidades Educadoras? no âmbito de um conceito educativo que ganha crescente terreno na área da pedagogia: a educação social.

Conceitos como Ética, Moral e Deontologia situam-se por vezes em fronteiras pouco definidas e nem sempre são utilizados de forma absolutamente clara. Para entendermos o que é a chamada ?ética docente?, quer explicitar o que, na sua opinião, se pode entender por cada um destes conceitos? 

Na linha de pensamento de autores contemporâneos como Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas, entendo a Ética como uma reflexão de carácter filosófico sobre os princípios e valores que devem orientar o ser humano - noções como o bem, o mal ou a justiça. A Moral, que se articula com a ética e dela não pode ser dissociada, implica uma formalização de normas de conduta que terão de estar de acordo ou subordinadas àquilo que entendemos por valores éticos, obrigando, no fundo, a considerar o primado da Ética sobre a Moral.
Esta distinção não significa que exista um distanciamento entre as duas, pelo contrário. E para a profissão docente isto é muito importante. Porque a Ética não é um assunto apenas reservado a especialistas ou a filósofos. Portanto, gostaria de salientar que entre a reflexão ética e a vida moral existe uma ligação íntima, um trânsito permanente. A Deontologia é uma moral, mas é uma moral profissional. E aqui levanta-se a tal questão muito debatida hoje em dia entre os docentes: até que ponto se justifica haver uma moral profissional? Não bastará uma moral comum?

Partindo dessa reflexão, concorda ou não com o estabelecimento de um código deontológico?

As regras são importantes na medida em que ajudam a orientar-nos na nossa acção e a relacionarmo-nos melhor com o outro e não para nos protegermos. Na concepção ética que defendo parte-se de uma visão positiva do outro. Porém, a forma como este debate tem sido abordado na profissão remete a palavra código para uma linguagem jurídica que eu considero não fazer sentido.
Não sou a favor de um código deontológico porque penso que não será através da formalização de regras que o debate deve assentar. O código deontológico é reclamado para a classe como instrumento de controlo e não de regulação, ao serviço de estratégias de poder que nada têm a ver com a exigência ética no sentido de uma cultura de responsabilidade que a profissão deve assumir a todos os níveis.
Neste domínio, posso dizer que tenho uma experiência privilegiada, já que no âmbito do ?Social Ethics Project?, um grupo europeu de investigação sobre problemas e dilemas éticos na área da educação social que integro, um dos projectos-piloto em que estive envolvida abordava precisamente os processos de decisão profissional. Uma das conclusões a que chegámos é que a existência de códigos era absolutamente irrelevante na hora da decisão porque os profissionais raramente a ele recorriam.
 
Essa dimensão da Ética e da Deontologia está presente na formação inicial dos professores?

Não, e considero que ela deveria ser obrigatória, até porque esta noção de ética que tenho vindo a defender trata de identidade profissional, com tudo o que ela implica em termos de memória e de projecção de futuro. Todos os professores com quem tenho trabalhado, ao nível da formação inicial e contínua, são consensuais em reconhecer que sentem necessidade de competências em matéria de tomadas de decisão e de relacionamento.
A distinção que eu defendi entre Ética e Moral também está relacionada com a forma de olhar a profissão, porque o professor não é um mero funcionário-especialista-ensinante, na perspectiva da escola tradicional. É um professor-educador, e isso implica que ele seja um decisor e que deve desenvolver competências nesta área, até porque o professor se depara diariamente com situações que são complicadas e que geram dilemas do ponto de vista ético.

Então, porque motivo continua esta dimensão ausente dos cursos de formação?

Existem muitos outros aspectos na formação inicial de professores que não são igualmente considerados. O reconhecimento da importância da ética como eixo de identidade está intimamente relacionado com o reconhecimento da docência enquanto profissão, e a formação inicial implica, por sua vez, com a valorização do estatuto profissional do professor.
No estatuto da carreira docente existe um capítulo consagrado aos deveres profissionais. Pode e deve ser melhorado. Mas a maioria dos professores desconhece, por exemplo, a existência de uma ?Declaração Internacional da Educação sobre a Ética Profissional?, que foi assinada pela Fenprof, onde as regras deontológicas da profissão aparecem assumidas não em termos de código mas na linguagem que eu considero mais adequada, que é a linguagem do compromisso, perante os alunos, os colegas, os pais?
Estes documentos funcionam como guias de acção, como uma referência interna para orientar e ajudar a imprimir segurança nas decisões e a contribui para uma maior coesão e identidade profissional. Mas são também uma referência para o exterior. E isso ajuda a credibilizar a profissão. Só que nós vivemos numa época em que o discurso da ética é muito sedutor e muitas vezes usado apenas como estratégia de marketing. E isso é o pior que pode acontecer na profissão docente.

Esses são princípios que deveriam merecer uma discussão mais aprofundada. Será que há esse espaço de discussão hoje em dia? 

Eu julgo que a classe docente tem vindo a evoluir num sentido positivo, mas ainda tem pouca memória escrita, pouco sentido de uma identidade e de uma cultura que já possui um capital de experiência e de valores que deveriam estar ao serviço de uma sabedoria profissional, mas que não está.
Na minha opinião, os valores éticos fundamentais dos educadores baseiam-se na proximidade e na responsabilidade. Neste sentido, costumo defender três princípios básicos: o primeiro é o reconhecimento da perfectibilidade de todas as pessoas, ou seja, de que todos podem e devem fazer um percurso de aperfeiçoamento - que, no fundo, é o direito de realização da sua humanidade. Para um professor, esta dimensão deveria constituir uma condição prévia ao exercício da sua profissão.
Depois, a crença incondicional na educabilidade do outro. Um professor que não crê neste pressuposto não pode acreditar que o aluno pode fazer um percurso de evolução positiva, nomeadamente através da sua intervenção.
Por último, a aceitação ética do negativo da educabilidade, ou seja, o princípio de que a educabilidade não pode ser exercida influenciando o percurso do outro a qualquer custo, porque o outro não é uma ?obra? minha.
Outra das dimensões da ética docente que eu considero absolutamente fundamental é a gestão escolar, a forma como estamos na escola, se temos ou não espaço para estarmos entre pares, para nos relacionarmos. Porque as escolas têm de ser lugares humanos, e isso ainda está longe de se conseguir.

Há quem defenda o retorno de um certo autoritarismo na relação com os alunos. Pela sua parte, julgo defender o princípio da autoridade. Qual é a diferença?

Eu julgo que a autoridade é um dever ético dos professores. Mas a autoridade não tem de basear-se no autoritarismo, porque a autoridade do professor decorre da sua própria presença pedagógica, que tem de ser respeitada e aceite. Ele tem de saber passar um testemunho, saber que é um adulto de referência e assumir-se como tal.

Defende também, nesse sentido, uma responsabilidade partilhada. Entre quem e sob que termos?

No contexto de uma deontologia, existem espaços de decisão profissional que têm que ser vividos no contexto da profissão e que decorrem do exercício de uma autoridade profissional, do sistema pedagógico. A avaliação, por exemplo, é um acto profissional por excelência que os professores não podem negligenciar. E esse é também um desafio ético: saber trabalhar e decidir em equipa. Mas a escola e o professor implicam hoje outros desafios, nomeadamente a ligação entre a pedagogia escolar e a pedagogia social.
E isto obriga que os professores saibam trabalhar numa lógica de responsabilização multi?profissional, com outros actores sociais e profissionais como os psicólogos ou os assistentes sociais, para além, claro, da co-responsabilização com os próprios encarregados de educação. Como estamos a falar num espaço de participação democrática, onde convivem muitos actores, a definição do estatuto de participação de cada um é fundamental. Caso contrário, significa que as autoridades respectivas se atropelam, quando é preciso que se reconheçam e se respeitem.

Educação Social: Um vasto campo de intervenção

É uma das principais impulsionadoras da educação social no nosso país. Pode explicar-nos o que se entende por educação social?

A educação social refere-se a todas as formas de prática educativa e pedagógica desenvolvida em contexto social e no âmbito de estratégias de educação não formal, partindo de um conceito muito caro ao século XXI que é a educação, ou a aprendizagem, ao longo da vida. Aprender ao longo da vida significa que se aprende na relação com a própria vida, o que implica olhar para todos os espaços da vida como potenciais espaços de aprendizagem.
É nesse sentido que hoje se fala em educação para a saúde, educação para a cidadania, educação ambiental, educação para a terceira idade, na sócio-pedagogia dos tempos livres, numa perspectiva exterior ao contexto escolar. A educação social tem um campo privilegiado de acção numa sociedade que se quer inclusiva, solidária, intervindo junto das populações ou dos indivíduos em risco social, na perspectiva de esta franja da população encontrar nela uma oportunidade para se revelar naquilo que tem de melhor e de consagrar o direito de desenvolver essas qualidades ao longo da vida.
Porém, a pedagogia social não deverá ser entendida, apesar disto, como uma pedagogia meramente de urgência. A pedagogia social é uma ciência da educação que, apesar de se desenvolver num contexto social exterior ao espaço escolar, traz para a escola um desafio, que é a relação com outros espaços de educação, sem pretender dar uma dimensão pedagógica à vida social.

Que tipo de profissionais intervém neste campo?

Os educadores sociais são profissionais preparados e licenciados, existindo já licenciaturas de educação social no nosso país. A Universidade Católica, por exemplo, oferece um mestrado de Pedagogia Social dirigido a educadores, educadores-professores, educadores de infância, animadores sócio-culturais, antropólogos, sociólogos, enfim, a todos os profissionais da educação que querem desenvolver as sua competências profissionais ou reflectir a sua área profissional em contextos não escolares ou quando intervêm em territórios educativos numa lógica de escola enquanto comunidade educativa.

Em que áreas pode a educação social intervir?

Em muitas e variadas áreas, como a formação profissional, a ocupação dos tempos livres, o trabalho com a terceira idade, as necessidades educativas especiais, com pessoas que sofrem de alguma incapacidade, o trabalho com crianças e jovens fora dos espaços escolares, nas áreas da saúde, da formação cívica, da arte, etc? Enfim, em todas as áreas onde haja a possibilidade de desenvolver o comportamento humano, de alargar oportunidades de aprendizagem e o desenvolvimento de aptidões.
A educação social parte do princípio de que todos têm possibilidade, capacidade, direito e dever de ir o mais longe possível na sua realização pessoal. Os educadores sociais baseiam a sua intervenção na própria concepção de desenvolvimento social defendida pelas Nações Unidas, que defende uma ligação entre o desenvolvimento pessoal e o desenvolvimento comunitário. Não existe oposição entre uma e outra. Pelo contrário. No fundo, a educação social desempenha o papel de manter vivo e saudável esse espaço de relação entre o indivíduo e o outro, entre o espaço e a sociedade.
Actualmente, a lógica de organização social fomenta uma cultura de aprendizagem permanente, que implica saber trabalhar, articular, potenciar, ajudar, apoiar, gerir projectos numa lógica territorial e assente em redes de actores sociais, que não é o mesmo que redes sociais.  Aqui o enfoque é sobretudo posto nas pessoas.
Hoje a maior parte dos projectos de intervenção sócio-educativa olha para as comunidades com todo o capital de riqueza e de cultura que elas possuem. Numa sociedade planetária como a nossa, e numa era de mundialização como a que vivemos, os valores do enraizamento ? a par dos valores universais, como a Declaração Mundial dos Direitos Humanos ? são fundamentais para que possamos entrar no diálogo inter-cultural com um sentido de identidade.

É nesse contexto que surge o projecto ?cidades educadoras?, no qual está envolvida?

Eu não sei se o projecto das ?cidades educadoras? estará directamente relacionado com este ideal de valorizar a educação, de apoiar e de potenciar o processo de desenvolvimento das pessoas ao longo de toda a sua vida. Existem muitos projectos a nível mundial neste domínio e está-se praticamente numa fase de ensaio.
No entanto, é preciso ter cuidado ao transferir para as cidades uma vocação educadora que deixe pouca liberdade ao cidadão. O fundamental é equilibrar muito bem a lei da oferta com a lei da procura. Porque se o fundamental, do meu ponto de vista deve ser responder às necessidades de desenvolvimento de aprendizagem de cada pessoa, é preciso que isso seja feito em dinâmicas de aprendizagem e de formação que sejam centradas nos interesses das próprias pessoas.
Às vezes, o projecto educador, a meu ver, pode esconder uma ambição um pouco totalitária ou, pelo menos pode correr o risco desse totalitarismo. É um desafio que se coloca quando passamos todas estas questões da pedagogia para o espaço público, para o espaço da cidade.

Mas as ?cidades educadoras? são apenas um projecto filosófico ou existe concretamente?

As ?cidades educadoras? são um movimento internacional com estatutos próprios, inspirados na declaração de Barcelona, que conta já dez anos, e com um congresso internacional que se realiza anualmente. Em Portugal, tanto Lisboa como o Porto aderiram à rede de ?cidades educadoras?, isto é, comprometeram-se a encarar a educação como uma prioridade no âmbito da sua estratégia de desenvolvimento, e, sobretudo, a basear nela a sua estratégia política de intervenção ao nível do desenvolvimento social. Isto implica que o seu crescimento enquanto cidade está subordinado a uma intenção de formação e de valorização dos seus espaços numa perspectiva pedagógica.

Na prática, se pudesse fazer um ponto da situação, por exemplo em relação ao nosso país, o que é que diria?

Não estou em condições de o fazer. Apesar disso, consigo ver muitas experiências positivas do ponto de vista da aprendizagem ao longo da vida em cidades que aderiram à rede das ?cidades educadoras?, e mesmo em outras que não aderiram. O município da Trofa, por exemplo, está a dar os primeiros passos no sentido de organizar-se como uma ?comunidade de aprendentes?, que, embora numa lógica um pouco diferente, é uma experiência no âmbito daquilo que também é a intenção das ?cidades educadoras?.
Neste momento o grande desafio das ?cidades educadoras? é a partilha de experiências e do conhecimento do que se está a fazer a nível nacional. O último congresso internacional, realizado em Génova em Novembro de 2004, tinha esse desafio em mente: criar espaços de partilha de experiências daquilo que se estava a fazer pelo mundo fora a este nível.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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