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Ataques ignorantes agridem a escola pública


Não há, na sociedade portuguesa, nenhum debate sério sobre a escola, os seus objectivos e as necessárias mudanças.

Vem este título a propósito dos constantes ataques que vemos, ouvimos e lemos nos jornais e na televisão a propósito da escola e de quem dela se ocupa.
Os resultados escolares, que todos desejaríamos melhores, são culpa do ?eduquês? e, claro, dos professores, diferentes (piores) do que eram no passado; os problemas actuais são culpa das políticas que tornaram a escola ?laxista?, porque consideram que os alunos têm que gostar de estar na escola e de aprender. Supremo disparate. À força, pois claro, com orelhas de burro, como antigamente. Tem que haver disciplina, muita disciplina, regras e obediência.
Pois, dizem, se a escola do passado nos ensinou a nós tão bem, que hoje somos intelectuais e jornalistas e cientistas e editores,  porque não ensinaria ainda melhor as crianças e os jovens de hoje? Pois claro, a culpa é de quem andou a mudar a escola, a torná-la diferente e pior, muito pior.
O que é isso da multiculturalidade? Invenções dos pedagogos e dos sociólogos, gente perigosa. O que interessam as ?competências?? Nada.
O que interessa são os saberes a devolver nos exames escritos, muitos exames. E os saberes, não há nada que enganar: são os de sempre, o português e a matemática, a história, as ciências e, vá lá, a geografia e o desenho. O que é isso de áreas curriculares? Invenções dos pedagogos.
Várias coisas me espantam nestas críticas, repetidas milhares de vezes, discursos dominantes sobre a educação e a escola em qualquer media.
Primeiro, espanta-me que os professores e investigadores das ciências da educação, de que faço parte, não reajam; ouvem criticar as terminologias específicas do direito, da medicina ou da sociologia? Não.
Ouvem criticar, com o mesmo à vontade e arrogância  outras instituições que estes ?críticos? de serviço também não conhecem? Não.
Porquê então esta sanha contra termos que as ciências da educação utilizam, tais como ?clima de escola, competências, provas aferidas, níveis de aprendizagem, pedagogia diferenciada? e muitos, muitos outros?
Suspeito que reagem assim porque, se consideram donos da educação e do saber e não suportam que haja espaços científicos próprios para estudar um campo de actividade que sempre lhes pareceu ?natural? e imutável?. Por isso acham as ciências da educação inúteis, porque não há nada para saber nem para compreender. A escola faz-se, aplica-se, sofre-se, conforme os chefes e as elites determinam e pronto.
Depois, espanta-me que estes senhores e senhoras que se pretendem competentes e rigorosos nas suas áreas de actividade específicas, critiquem o que não conhecem com tanto à vontade.
Saberão eles como mudaram os modos de vida, como são hoje diferentes as crianças e os jovens nas suas relações com os adultos?
Não sabem.
Saberão eles que grande parte das mudanças da escola decorrem de grandes mudanças sociais (na composição social e cultural dos públicos escolares e nas suas relações com a informação e com o conhecimento, por exemplo)?
Não sabem.
Saberão simplesmente o que é dar aulas e viver a profissão docente?
Não sabem.
Saberão que a escola é uma produção histórica e que o modelo de escola tradicional que tanto gabam foi solidário de um tempo passado e de condições que já não existem?
Deviam saber.
Saberão que um dos grandes problemas da escola actual, que dificulta a qualidade das aprendizagens, é o peso dos modelos tradicionais (dos saberes dispersos e descoordenados ao ensino expositivo)?
Não sabem.
Saberão que a escola do futuro, prefigurada em muitos aspectos da escola actual, projectada em cenários organizados pela OCDE,  terá que ser muito diferente da escola do passado de que têm tantas saudades?
Não sabem.
Saberão que a escola precisa de autonomia e de diversidade, precisa de integrar novas linguagens (novas tecnologias) e de ter no centro as pessoas (alunos e professores) que nela vivem, aprendem e ensinam?
Não sabem nem querem saber.
Um grande projecto de trabalho que a OCDE conduz há vários anos (não é o Pisa, não, porque esse levam-no muito a sério) centrado na ?Ecole de demain?,  considera que o reforço do statuquo (da escola tradicional) não é desejável, assim como não o é a ideia do cheque-educação e da educação como um bem de mercado. Os cenários considerados prováveis e desejáveis são os que se centram em escolas mais autónomas, mais inteligentes e menos burocráticas, escolas em rede e inseridas em comunidades de aprendizagem. Pois é, não é invenção de ninguém das ciências da educação, é a Organização para a Cooperação e o desenvolvimento económico quem o diz. A OCDE não ignora o papel da instituição escolar no desenvolvimento das sociedades, na redistribuição dos lugares sociais, na coesão e na cidadania. Disto, os críticos nunca ouviram falar nem precisam. Eles sabem tudo.
Estas críticas ignorantes,  constantes e repetidas,  fazem mal à escola e a todos aqueles que querem investir na melhoria da qualidade. Sob suspeita, a escola fecha-se, os professores desinvestem.
Vivemos um terrível paradoxo: a escola precisa de mudar mas são os que se consideram mais esclarecidos e poderosos que impedem a sua mudança.
Vivem-se hoje tempos difíceis para a escola pública.
Corte e costura marcam as políticas actuais, sem qualquer perspectiva para a melhoria da qualidade. Confortam-se as críticas ignorantes.
Os sindicatos, suicidários, não viram chegar as mudanças e vivem no passado.
Não há, na sociedade portuguesa, nenhum debate sério sobre a escola, os seus objectivos e as necessárias mudanças.
Só se diz que queremos ter melhores resultados no PISA. E eis como um meio se tornou num fim. Como lá chegar? Voltamos ao mesmo. Com mais exames, melhores alunos (que saia de lá quem não aprende) e melhores professores. A escola do passado, pois claro.
O insucesso e as repetências, o abandono, os milhares de jovens sem futuro profissional, nada disso interessa. Afinal, a culpa dos problemas é da escola se ter tornado tão diferente do que já foi.
Quem invoca o passado para responder ao presente, não tem futuro.
E as ciências da educação? Sabe-se tanto sobre ?o que devia ser?? Não têm nada a dizer??


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 147
Ano 14, Julho 2005

Autoria:

Ana Benavente
Deputada do Partido Socialista. Professora.
Ana Benavente
Deputada do Partido Socialista. Professora.

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