Página  >  Edições  >  N.º 146  >  Num dia que não uma segunda-feira

Num dia que não uma segunda-feira

Saiu de casa com a pressa de quem ia a lado nenhum. Deixou que o autocarro passasse por si a um metro da paragem. Muitas vezes correra para o apanhar, mas há dias que não lhe apetecia fazer nada. A não ser? Não ir trabalhar. Assim, como quem não quer mas tem de, Tiago foi descendo a rua a pé. Quase de paragem em paragem imaginado a desculpa que daria pelo atraso.
Ia já no fim da rua quando entrou num quiosque para comprar o jornal. Educadamente entabulou conversa com o velhote, provavelmente o dono, que estava ao balcão. ?Bom dia, hoje há boas ou má notícias?? Nada mais a propósito do que falar de notícias a quem as vende.
Tirando os óculos, e com as hastes a fazer de ponteiro, o velhote mais que habituado a falar com os clientes sobre a actualidade, começou sem hesitar o boletim informativo: ?Parece que o Túnel de Ceuta pode vir a desembocar outra vez perto do Hospital? já viu? Anda e não anda. Morcões? Olhe, o Bush foi à Geórgia dizer que o país ?é um farol para a liberdade na região e no mundo?. Pois sim? é pena o farol da Geórgia não chegar aos EUA que eles lá andam muito às escuras, não acha??
A conversa tinha pegado qual trepadeira... E durou, até à chegada do autocarro. Como Tiago permanecia na rota das paragens desta vez conseguiu apanhá-lo.
Continuava ainda sem muita disposição de chegar ao escritório, por isso, quando saiu na paragem habitual a dois metros do emprego, não seguiu para lá. Desviou-se para o café mais próximo.
Depois do pequeno-almoço aquela sensação de cansaço passaria de certo, pensou. No fundo, o facto de ter a barriga vazia podia estar na origem de toda aquela apatia.
Mal se sentara já o empregado seguia ao seu encontro de pano na mão para dar uma esfregadela no tampo da mesa.
?O que vai ser jovem??, perguntou.
?Algo que dê sustento?, respondeu. O empregado sorriu.
E Tiago foi dar uma espreitadela à montra de bolos. Açúcar. Muito açúcar. Lembrava-se das aulas de Biologia de que os hidratos de carbono davam energia.
?Pode ser, uma bola de Berlin, um Éclair e meia de leite escurinha.?
Que satisfação. Os pastéis estavam a fazer efeito. Pagou o pequeno-almoço e olhou para o relógio. 10 horas. Suspirou.
Entrou no escritório tentando parecer animado, esboçou um sorriso amarelado a um colega para disfarçar a má disposição que trazia consigo, não apenas nessa manhã, se bem que os sintomas nesse dia estivessem mais agudos, mas de há meses.
Entrou na sua sala. Abriu as janelas. Precisava de ar. O escritório estava a abarrotar de processos e pastas tinha um cheiro asfixiante a papel. Sentou-se na secretária. Sentia um pouco de enjoo. Do pequeno-almoço? Não, claro que não. Talvez do mundo, pensou enquanto assistia ao iniciar do sistema operativo numa concentração apática. Interrompeu-o a chegada do director que entrara de rompante na sua sala.
?Bom dia, bom dia!?, cumprimentou sorridente e saiu apressado antes que Tiago pudesse devolver a cortesia. Era um homem que devia andar na casa dos cinquenta e muitos, mas cheio de gás. Algo que fazia uma certa impressão aos restantes funcionários que sempre que o tema vinha à baila se perguntavam: ?Que vitaminas tomará??
Que se soubesse vitamina E, de euros. A empresa facturava bem. Trabalho não faltava. Sobretudo na secretária de Tiago. Até ao fim do dia havia que entregar o relatório da auditoria realizada a uma empresa de construção civil. Oito horas oficiais mais as que fossem necessárias até à última linha estar escrita. Ligou o computador e sentou-se. A folha do Word em branco e a manhã cheia de sol. Recostou-se na cadeira e mentalizou-se que precisava de produzir. Que sorte a do senhor do quiosque. Passar o dia a ler a actualidade, pensou Tiago invejando-o. E com este pensamento levantou-se para ir à máquina do café.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 146
Ano 14, Junho 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo