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A falta dos filhos

Os dias estavam pesados de mais, apesar da idade ser ainda a dos cinquenta e poucos. Vinte e oito anos de casamento, sem lua-de-mel. Cinco passados a fazer contas à carteira para o aluguer, o pão do dia e as despesas com a criação dos dois filhos. Mais cinco anos a amealhar o poupado em luxos evitados, nada de jantares fora, as férias na praia do costume, os cadernos, os lápis e as canetas para a escola oferecidos como presentes de Natal e aniversário às crianças. Mais dez a passar sem serem notados, os filhos a deixar o básico, o secundário, a casa a ser paga ao banco, novas preocupações com o dinheiro gasto nas universidades. Os últimos oito... Contados a gotas, a casa paga vista mais como herança a deixar do que bem a gozar, menos preocupações com os filhos já empregados e finalmente os dois, marido e mulher no seu estado original, sós.
Não que os rapazes se ausentassem por muito tempo. Quiseram alguma independência quando passaram a fasquia dos 25 anos. E talvez por serem gémeos, quando um decidiu comprar casa, o outro fez o mesmo. Separados, mas no mesmo prédio. Longe dos pais, mas a dez minutos da casa destes.
Mas a proximidade não era a suficiente para colmatar a ausência que ambos haviam deixado. Na mudança os rapazes levaram mais do que as toneladas de papel acumulados nos anos de estudo. Empacotaram a música nas alturas, as conversas sobre raparigas, os amigos que apareciam para estudar e acabavam por jantar, as brigas pelas chaves do carro do pai e de consolo deixaram apenas alguns brinquedos quase novos. A mãe sempre os ensinara a brincar sem estragar e os rapazes tinham crescido a saber que o dinheiro custava muito a ganhar ao pai.
Fora a ausência dos filhos, tudo permanecia igual. David continuava a trabalhar na siderurgia. Gorretti na lida da casa. Havia apenas mais silêncio. Menos assunto de conversa. Sobretudo se os gémeos não apareciam pelo menos ao jantar. Por isso, mal chegava a casa, a primeira coisa que David perguntava à mulher era se os filhos vinham comer. Sendo a resposta positiva, o pai continuava o interrogatório: «Não vais fazer peixe, pois não? Sabes que os miúdos não gostam. Há coca-cola no frigorífico ou queres que vá buscar? As camisas que eles trouxeram já estão passadas a ferro?» Gorretti a tudo acenava com a cabeça. Os rapazes não passavam a ferro, pelo que lavar e passar camisas continuava a ser uma tarefa da mãe. Raramente os gémeos jantavam nas suas casas. E quando o faziam cabia a Pedro a tarefa de cozinhar pois era o mais dotado e o que mostrava bem mais apetite por uma boa pratada. André, por seu lado, costumava passar bem a sandes de atum no formo e esta era verdadeiramente a sua especialidade. Assim dificilmente trocavam a comida da mãe pelas suas. O pai agradecia.
Com os gémeos à mesa a vida voltava à casa. E o pai encontrava quatro ouvidos atentos para as suas explicações sobre as avarias decorridas na fábrica, as novidades do sindicato dos metalúrgicos, ao qual pertencia, e os constantes alertas para os velhos perigos do novo liberalismo, um sinal da presença do pai na última reunião sindical. Os gémeos adoravam o pai. A tal ponto que fingiam o interesse, quando não o tinham. Só a mãe notava a manha dos dois. Mas o pai entretinha-se mais com a atenção que os rapazes lhe davam, passava um bom serão e ficava muito bem disposto. A mãe agradecia.
Sem os gémeos, o pai ficava mudo, a mãe calada. Terminado o jantar David recostava-se no sofá a ver o telejornal, Goretti levantava a mesa e recolhia à cozinha para lavar a louça. Depois trocavam de postos. Ou mais ou menos isso. Findo o telejornal David ia para o quarto ver a Sport TV e Goretti regressava à sala para mais um episódio da ?Senhora do Destino?. Por ter bastante dificuldade em adormecer, Goretti via de seguida a ?Cabocla?, a Sessão da Noite, e a Última Sessão. Quando chegava ao quarto já David dormia profundamente. Era nessas alturas, em que se deitava às três horas e tal da manhã, que Goretti recordava as noitadas que passara com os gémeos. Quando eles, ainda estudantes na universidade, faziam madrugadas de estudo na véspera dos exames e ela os acompanhava noite dentro. Alimentando-lhes o ânimo com café pingado com leite e torradinhas com manteiga.
Nessas noitadas David dormia. Também nas outras, em que os rapazes picavam o ponto todos os dias nas festas da Queima. Goretti nunca se deitava antes que os gémeos chegassem e eles voltavam sempre juntos, para evitar que a mãe permanecesse acordada apenas por um deles. Uma demonstração de afecto que para Goretti seria suficiente se fosse a única, mas não era. Havia os elogios à comida que fazia ou à forma como a suas respectivas casas cheiravam bem quando ela as limpava. Era nisso que Goretti pensava enquanto sozinha assistia à televisão. E na falta que, ainda assim, sentia dos filhos.


  
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Edição:

N.º 145
Ano 14, Maio 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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