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Augusto Abelaira ou o sentido pessoal da escrita

De romance para romance, Augusto Abelaira sempre retomou o fio da mesma meada, desenredando os laços de uma teia de mil contornos, desenhos e arabescos, sempre com um pessoal sentido da própria escrita. Podemos dizer que o autor de Enseada Amena sempre procurou os ecos da mesma voz, os passos de uma caminhada que foi longa, nas curvas e contracurvas de um singular percurso de romancista. Mas o que de facto impõe Augusto Abelaira como um autor modernista é ainda essa lúcida consciência dos valores do seu tempo e no modo claro de saber revelar personagens de ?carne e osso? à semelhança do que a própria vida ensina e mostra, como é patente nos seus primeiros livros de ficção.
Editado em 1968 e relido à distância de uns quarenta anos, Bolor foi elaborado sob a forma de um ?diário? em que o autor regista os sinais de um amor que ruiu e acabou, se desfez nos seus traços mais leves ou menos importantes. A gratuitidade dos gestos e palavras, os silêncios e os diálogos inacabados ou sem muito sentido, tudo isso faz desta obra um ?diário? de incomunicabilidade, incómodo e muito perturbador. Trata-se de um romance dentro de outro romance, um pouco à maneira de Michel Butor em A Modificação, que é sem dúvida um livro de quem, talvez na sequência do abalo europeu do Maio/68, parecia ter já pouco para dizer ou disse tudo (e não era verdade como depois se observou em posteriores romances, dentro do mesmo sentido de ambiguidade expressiva), mas há ainda lugar para a comunicação definida do ?eu? e do ?nós?, no acto de preencher as horas disponíveis na leitura de livros que pertencem a um mesmo ?círculo? de relações (anotemos, de passagem, que a personagem Maria dos Remédios lê e gosta de ?Memória dum Pintor Desconhecido? de Mário Dionísio, de ?Os Dias Íntimos? de João José Cochofel ou da ?Imitação dos Dias? de José Gomes Ferreira).
Romance de certo modo descontínuo, onde tudo acontece como se não tivesse acontecido, mas onde o ?passado? propriamente dito se revela como indicativo futurante de uma vivência que se não descortina com toda a evidência, Bolor confirma ainda que o autor de A Cidade das Flores não desejou narrar coisa nenhuma ou muito simplesmente procurou abordar um problema do mundo actual (as conhecidas relações amorosas de qualquer casal), com implicações que nem sempre se entendem em nitidez. Mas o que Abelaira narra neste romance agora reeditado (?Os versos/ que te digam/ a pobreza que somos?, declara Carlos de Oliveira) ainda nos interessa como matéria romanesca com que pôde edificar o ?corpus? ficcionista que literariamente se afirmou nos últimos romances.
Augusto Abelaira é sempre de difícil enquadramento literário, por ter sabido urdir a trama dos seus livros numa profunda e bem moderna ambiguidade, mas procurou em Bolor alcançar uma forma mais intimista pela própria confissão das suas personagens e pelos caminhos ínvios que Aleixo, Humberto, Leonor e Maria dos Remédios percorrem, dentro da mesma angústia e perplexidade do mundo de hoje, que depois se alargaria em romances como Sem Tecto Entre Ruínas (1978).
Romancista que sempre procurou encontrar um leitor ideal para a compreensão dos seus romances, Augusto Abelaira ocupa desde há muito um lugar de primeiro plano na moderna literatura portuguesa, dotado de um sentido pessoal de excelente escrita e numa voz singular e única, no tom expressivo e grave dos diálogos, no entendimento e desmistificação das relações humanas sempre presentes nos seus livros, podendo dizer-se que toda a sua obra abriu caminho a uma pós-modernidade literária que ainda o situa como um romancista que vale a pena ler. E por isso os seus livros têm sido reeditados com regularidade para assim confirmar junto dos leitores que ainda está vivo e a nosso lado.

Augusto Abelaira
BOLOR, romance
Ed. Presença / Lisboa, 2004.


  
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Edição:

N.º 143
Ano 14, Março 2005

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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