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Pura sorte

O ritual cumpria-se todas as quartas-feiras. Depois do almoço, António passava pela Casa da Sorte a caminho do café. Entrava e respirava fundo. Adorava sentir o cheiro da sorte no ar, dirigia-se para as caixas atulhadas de boletins dos vários jogos da Santa Casa da Misericórdia. Depois fazia uma pequena ginástica aos dedos da mão direita enquanto deixava que o ?feeling? guiasse a escolha do boletim do totoloto. Anos e anos a jogar para acertar em três ou quatro números, sem que os prémios chegassem para aplacar o desejo de ganhar.
Chegara mesmo a jogar às escondidas da mulher, numa altura em o ?feeling? o levava a preencher cinco boletins por semana. Não só para esconder o dinheiro que gastava. Mas porque Dalila ? farta das crises de ansiedade do marido, das noites mal dormidas em que acordava com gritos de ?Ganhei! Ganhei, fiz seis, fiz seis!? ? fora queixar-se à médica de família que imediatamente o mandara a um psiquiatra. Uma experiência que esperava nunca mais ter de repetir. Afinal maluco era o homem que, tendo a possibilidade de ganhar milhões de uma só vez, se contentava com uns tostões ao fim do mês. Assim pensava António.
O que sentia mal saia da Casa da Sorte com o boletim na carteira era quase indescritível. A felicidade em estado bruto, sem razão e por todas elas. Entrava no café O Campeão e procurava uma mesa com vista para a rua. Gostava de olhar com atenção para cada coluna do boletim ainda virgem. E só o começar a preencher depois do primeiro trago na bica.
O cálculo mental por trás das cruzes tinha várias lógicas que eram determinadas pelo ?feeling? do momento. Podiam corresponder às idades aproximadas das pessoas que passavam do outro lado da vidraça. Ser números com que sonhasse; e para ter a certeza de que não esquecia os algarismos ditados pelo inconsciente punha debaixo da almofada um bloco de notas e um lápis, para escrever às escuras, não fosse Dalila fazer mais queixinhas à doutora. Ou resultado de uma técnica que aperfeiçoara com os anos: suster a respiração e só deixar o ar entrar nos pulmões quando todas as colunas estivessem preenchidas. Raramente, usava técnicas que considerava serem pouco fiáveis, como a de folhear o jornal e apontar o número da página em que parava ou usar as datas de aniversário da família.
Feitas as cruzes, pagava a bica, voltava à Casa da Sorte para registar o boletim e corria para o emprego com a sensação que não mais precisaria de correr na vida depois de Sábado à noite. Até lá era a febre. Enquanto dormia só tinha pesadelos. O boletim na mão e a Casa da Sorte fechada para obras, as cruzes certas mas o boletim por entregar? E as cotoveladas a Dalila na agitação do sono profundo. Acordado só sonhava com um casarão à beira mar para si e para a mulher, dinheiro para o irmão e a cunhada pagarem o apartamento ao banco, um Mercedes para si, um carrito para o filho. Fazia ainda parte dos seus planos ajudar os pobres, ser uma espécie de Abramovic do Sport Comércio e Salgueiros, o seu clube do coração? E, por último, sendo este o seu sonho mais íntimo, António desejava com toda a vontade tomar o lugar ao patrão. Planeava, por isso, comprar a firma onde trabalhava desde os 15 anos, mal pudesse dispor da choruda quantia do totoloto.
Com estas maquinações António afugentava todos os aborrecimentos do dia-a-dia até à ?Hora da Sorte?. Religiosamente não perdia a extracção. Mas nesse Sábado, de fim de mês, Dalila cismara de ir ao hipermercado ao fim da tarde. E, ignorando o totoloto, fizera finca-pé para que jantassem no shopping não deixando a António hipótese de recusa ? sob pena de na segunda-feira ir direitinha ao posto de saúde logo pela matina. Nunca uma pizza lhe causara tanta angústia. E tamanha azia ver Dalila comer demoradamente a última fatia.
Quando, enfim, chegaram a casa, a extracção do totoloto estava mesmo no fim. A chave fugira-lhe do ecrã num ápice. Por segundos António tivera a impressão daqueles serem os seus números. Com o teletexto ainda por actualizar António desesperou. Mandou Dalila às urtigas juntamente com a médica, telefonou ao irmão, bateu à porta da vizinhança mas ninguém tinha a chave. Inacreditável. Para António era simplesmente um absurdo o facto de não haver um único apostador no prédio. Resignado, meteu-se na cama com o boletim na mesinha de cabeceira e a televisão no teletexto. Adormeceu com o comando na mão.
Acordou era meio-dia com Dalila atirando o jornal para cima da cama, num gesto brusco sinal do desagrado com a cena da noite anterior. Sem se levantar, pegou no boletim e na última página. Nada na primeira coluna, nada na segunda, nada na terceira... Esbugalhado, António gelou. Na quarta coluna, segunda fila do boletim, estavam os números que apareciam no jornal. Seria possível?
Saltou da cama. Vestiu o fato-de-treino e, ignorando as advertências de Dalila de que o almoço estava quase pronto, saiu porta fora em direcção ao café do bairro. Sem alaridos, procurou apenas um outro exemplar do jornal que tinha em casa. O teste dera positivo. Fizera seis no totoloto. Voltou a casa. Espreitou o teletexto e novamente pode conferir o impensável. Estava milionário. Sentou-se à mesa com um apetite voraz. Segunda-feira iria ser um dia agitado.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 142
Ano 14, Fevereiro 2005

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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