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Excisão feminina: crítica sobre uma tradição ancestral

Penso que não vou surpreender ninguém se afirmar que hoje, mais do que nunca, estão presentes em Portugal religiões, etnias e culturas diferentes e variadas. Essa diversidade deveria ser uma porta aberta para o Mundo e o seu reconhecimento um dever do Estado e da sociedade. Todavia, a fé, os costumes e as tradições, por vezes, não permitem a abertura necessária para que a integração seja feita de forma parcial, pois os atropelos à dignidade e à integridade física e mental das pessoas são, em algumas culturas, frequentes.
A prática da mutilação genital feminina (excisão) insere-se neste contexto. De um modo geral, trata-se de práticas que vão desde o corte simbólico, parcial ou mesmo destruição total do clitóris a sangue frio.
Alguns historiados prevêem que o costume da excisão tem a sua origem mesmo antes do século V a.C., sendo já nessa altura praticada entre os fenícios e os etíopes, mas não se remete somente a países como a África ou mesmo o Egipto. Na Europa, nos séculos XIX e XX as mulheres eram excisadas com o intuito de se livrarem de ?males? mentais e sexuais (masturbação e lesbianismo). Hoje em dia, esta prática ainda é vivida por mulheres em 28 países africanos e alguns asiáticos. No entanto, já se torna frequente, em países onde a mutilação genital feminina não é uma prática tradicional, ser exercida por comunidades imigrantes, que é o caso de Portugal.
Por ano, cerca de dois milhões de raparigas sofrem mutilações genitais. Em todo o Mundo existem cerca de 135 milhões de jovens e mulheres que já sofreram uma excisão, número ao qual se juntam, todos os anos, mais dois milhões. Números que nos devem dar que pensar!
O relativismo cultural e as diferenças existentes em todas as sociedades são sempre algo que devemos todos compreender e aceitar, mas dentro de determinados limites. Molestar crianças com meses de idade, aprisionar mulheres ao peso das decisões dos homens e de uma comunidade inteira, por factos que poderão vir a acontecer, tais como relações extraconjugais ilícitas, e submetê-las ao peso do desprazer e sofrimento contínuos é algo, fundamentalmente, desumano.
Nestes costumes, deparamo-nos, acima de tudo, com uma diferença de género, onde as mulheres são vistas como meros objectos, apenas diferentes dos homens na sua constituição física e biológica. Se para nós, ocidentais habituados a um modo de vida marcado pela igualdade, ainda que por vezes aparente e ilusória, se tratam de atitudes completamente escabrosas, para outras sociedades, se a mulher nasceu nessa condição é porque Deus a enviou para cozinhar, lavar a roupa, ter filhos, servir o homem e sofrer.
Assim, entre os principais motivos para a realização desta prática encontramos o da higiene e da limpeza, pureza e fidelidade e os motivos estéticos, acreditando-se que a mulher ficaria mais feminina. Na minha opinião, na base destes motivos todos está o reconhecimento social, visto que as mulheres não ousam denunciar essa prática e tão pouco considerá-la como uma ofensa contra o seu corpo, sinto-me tentada a afirmar que, se se nasce mulher, já se nasce vítima.
Acima de tudo a religião, seja ela qual for, deve contribuir para a dignificação do ser humano e para a humanização da sua relação com os outros. Um ser religioso não é obrigatoriamente um ser irracional, pronto a entregar-se a actos dolorosos, abdicando daquilo que é a marca suprema de humanização: a consciência. Os indivíduos são livres na sua opção religiosa, cabendo ao Estado apenas o pleno exercício dessa liberdade, não lhe cabendo, por isso, interferir nessas escolhas, apenas alertando e prevenindo para os males que algumas podem causar.
Nem sempre a tradição contribui para o desenvolvimento do ser humano. O legítimo ?direito à diferença? não se pode exercer à custa dos valores universais dos direitos humanos e a defesa extremada das ?identidades?, sejam elas religiosas, culturais ou étnicas, tem apenas como consequência o reforço dos guetos e do enfraquecimento do tecido social. Não basta punir, há que encontrar mecanismos de integração e de apoio social que não favoreçam a oferta e a procura de soluções alienantes. O Estado, tal como todas as outras instituições, deve fazer, essencialmente, com que o cidadão de origem guineense ou cigana, muçulmano, ortodoxo ou judeu se sinta, em primeiro lugar, cidadão do Mundo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 141
Ano 14, Janeiro 2005

Autoria:

Ana Melro
Socióloga. Mestranda em Sociologia da Infância
Ana Melro
Socióloga. Mestranda em Sociologia da Infância

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