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Aureliano Lima - vinte anos depois da sua morte

Vinte anos passados sobre a morte de Aureliano Lima (1916-1984), a sua arte permanece connosco, tanto na escultura como na poesia de que nos deixou vários livros. Sobre o seu trajecto de escultor, devemos referir que ainda recentemente, no Roteiro do Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian (Outubro de 2004), em verbete assinado por Ana Filipa Candeias, não deixa de se registar a importância da sua escultura e o facto de haver nessa colecção três peças em ferro dos anos 50-60 assinala, de uma forma irrecusável, o contributo dado por Aureliano em longos anos de actividade criadora, sem mesmo deixar de se destacar as esculturas de grandes proporções que hoje se podem admirar em Nelas, Gaia ou Vila da Feira.
Mas, a par das obras de escultura, pintura e desenho, e sobretudo dos retratos que fez de Antero, Afonso Duarte, Camilo, Pascoaes, Torga ou Pessoa, importa relembrar nesta data que está ainda por reunir num único volume a sua Obra Poética, na qual, além dos livros publicados, se devam incluir os poemas inéditos ou dispersos em jornais e revistas. É um trabalho que se impõe para assim se colocar no merecido lugar uma das vozes poéticas mais singulares dos anos sessenta. Trata-se, em primeiro lugar, do itinerário de quem, através da palavra escrita, soube modelar, livro a livro, a mesma voz interior, em imagens de rigor e emoção, através de uma obra que começou em 1963 e não foi longa, mas nela se revelam os sinais de uma voz própria que se afirmou nos liames dos sentimentos e nas águas depuradas de um verbo de sonoras reminiscências. Mas, antes de mais, trata-se de uma poesia de tranquilidade e de sossego, na dolência do seu amargo cântico, na seiva que escorre pelas águas do rio que por ela subjaz em todas as imagens. E é sobretudo o reflexo de um canto que, na musicalidade do verso ou da emoção comovida, traça os círculos de um coerente percurso poético: por entre veredas de eucaliptos, nas águas que o tempo revolveu ou afastou. E assim o sentido primordial da poesia de Aureliano é também o das sombras e dos sinais presentes na escultura que pôde fazer em mais de quarenta anos de trabalho sempre em busca de uma poética das formas. Na poesia e na escultura. Sempre. E por esse sentido de servidão, nos caminhos da arte, se consumou um trajecto, não em linha recta, que nunca foi coisa do seu feitio, mas na via pungente e sinuosa dos sonhos que pelos poemas se cruzam e desaguam no mesmo rio caudaloso e subjacente às formas e imagens, às palavras e sons de uma constante  "música vital".
Para muito longe ficaram os lugares de Nelas ou Lagares, perdidos nas faldas e sombras pedregosas da Estrela, com o Mondego correndo perto no engrossar das suas águas e as ribeiras de Cavalos ou de Seia  tomavam o nome de rios por onde se haviam de cruzar, em tantos anos de martírio, as águas remansosas de outros rios que não ficaram esquecidos. Mas Aureliano não guardava da infância uma memória que valesse a pena recordar: tudo depressa se perdera na ausência do Pai, levado ou ido para terras do Brasil e de lá nunca deu notícias, a adolescência passou depressa no refrear de muitos anseios que os anos de vida quase não consentiram se cumprissem como desejava.
Por mim, sei como antigo era o desejo de reler todos os poemas, cartas e outros papéis de Aureliano que no fio dos anos consolidou um convívio e uma amizade pelas muitas conversas havidas no acaso dos dias, nos poemas que se não perderam e povoaram os mesmos rios e lugares na estrada da vida que foi longa e afinal tão breve. Não apenas pelo fremir das ideias e das emoções, mas por ser através das palavras, no acaso das  circunstâncias ou em momentos de desânimo, que tudo acabou por chegar nos recados que importava dar. Essencialmente por isso. Mas dizem certos filósofos (e alguns poetas disso se não esquecem) que não é conhecido outro rio tão antigo como o da amizade, quando esta se consolida na mútua compreensão, por tudo e em tudo o que se revela de mais intimista e pessoal. No plano das ideias, das razões para a vida e nas desrazões perante o meio em que vivemos, nos apelos e nos desabafos, nos sonhos revelados e nos fracassos conhecidos:

Grande é a casa do espírito,
onde poucos cabem,
porque nela brilha o arado de oiro
que cega os olhos baços.

E de tudo os poemas de Aureliano nos falam no discurso escorrido pelas águas do tempo, nos anos que se passaram entre o sonho da arte por realizar e na morte acontecida em tarde chuvosa e fria de Dezembro, na saudade de partir antes de tempo e na desilusão que levou por não ver de todo reconhecida a obra que lhe coube construir no alargar calmo dos anos  e no silêncio do seu atelier. Em Coimbra e em Gaia, até ao fim dos dias, quando a voz emudeceu e as mãos pararam no tempo e no sonho de outras formas por inventar, na memória de mais um amigo que se despediu, sem um protesto e muitos protestos na alma. Na solidão e silêncio da casa, por essas paragens tão próximas do Porto que sempre foram da minha infância e adolescência. Mas, na hora da partida, saber que foi bem acompanhado até ao cemitério de Mafamude, na lembrança do monumento a Pessoa que foi o último grande trabalho de escultura erguido em terras de Santa Maria da Feira, no coração industrial da cortiça, executado no fremir da emoção e nos claros sinais da doença que pouco depois o havia de derrotar.
Mas são vários e longínquos os rios que se levantam e percorrem esse caminho como sinais geográficos que a memória deles guarda: Dão, Alva, Mondego ou Douro como sombra que perpassa em muitos poemas. E, por isso, na forma de celebrar os vinte anos que agora passam sobre a morte de Aureliano, importa dizer que permanece viva a saudade do seu convívio ou a leitura dos poemas que não deixou de escrever quando já se aproximava dos setenta anos. E ainda na sentida e cordial convicção de que se impõe publicar a sua Obra Poética para sentirmos o entusiasmo do verbo ou o clamor dos seus protestos e desânimos. Mas ainda e sempre na lembrança deste rio Douro de antigas e renovadas águas:

Este é o rio de brancas íris
deslizando pelo círculo da luz,
no fim do tempo,
pelo século dos séculos,
onde pernoita a linha do infinito.


Dezembro, 2004                                

UM POEMA de AURELIANO LIMA

Ah, eu o sei pelos rios vitalícios.
Eu o sei pelos vivos em seus
teares: é aqui que levanto
o amor ressuscitado, entre

o coração e o dardo. Sei-o
pelo arado, entre o ser e o
círio, pelas páginas
de dentro, em que as coisas

se veneram na combustão
das metáforas descalças:
aves que foram ontem;
lâmpadas que foram soltas
,

enquanto as sílabas, em seus
ocultos olhos, nos fixam
como punhos e se deitam
ou nos dizem que o

espírito é um malmequer
aberto, um espinho
e um arco, o lugar
do abismo sob o vácuo
.

É aqui que se erguem os braços,
líquidos como navalhas,
álgidos como faúlhas, em
seus dedos múltiplos.

Do livro inédito Diálogo de Cristais (1984).


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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