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Da indústria da morte à comercialização da educação

Este é o tempo dos negócios. «Os heróis da Renascença foram os pintores, os do século XVIII e XIX foram cientistas e  filósofos, os do nosso tempo têm de ser os homens da finança, da indústria e do comércio», disse um empresário português.

Neste tempo até a morte é «uma janela de oportunidade». Há sempre clientes. Neste ramo, quanto pior vai a vida, melhor vai o negócio. Por cá, a parte mais lucrativa da indústria da morte já está nas mãos dos espanhóis que por sua vez estão nas mãos de uma multinacional inglesa e de duas corporações americanas. Os espanhóis estão no grupo porque têm mais «know-how» no ramo católico do que os americanos e ingleses que são mais especializados nos ramos protestante e agnóstico. O futebol deixou de ser um desporto para ser indústria e a morte deixou de ser um assunto privado para ser uma actividade lucrativa.
A esta procura de oportunidades de negócio não podia escapar a educação. Os grupos financeiros, dos países do centro, em particular os EUA, Inglaterra e Nova Zelândia, desde há alguns anos que descobriram este potencial económico. A educação, tal como a saúde e a morte, foram declaradas indústrias de enorme potencial e futuro. Ensaia-se há anos a melhor forma de tirar partido deste novo filão.
Não cabe neste editorial historiar o modo como se tem desenvolvido o processo de transformação da educação em mercadoria. Mas cabe abrir aqui espaço à reflexão sobre este fenómeno. É que a Portugal as coisas chegam sempre tarde, mas chegam. E o lançamento do negócio e os primeiros ensaios já cá chegaram.
Para a educação ser uma indústria lucrativa é desejável que a escola pública seja privatizada, embora a experiência americana das «escolas charter» nos vá mostrando que a comercialização da escola pública pode ser também um negócio apetecível. É por isso importante conhecermos os vários discursos e as várias estratégias conducentes à privatização da educação. Mas convém também ter em conta que em países como os EUA o problema já não se põe tanto entre escola pública e privada, mas entre escola comercializada e não comercializada. Uma parte das escolas públicas ? graças à sua dependência dos poderes locais e particulares ? já estão a ser exploradas comercialmente como se fossem escolas privadas. 
As  políticas de educação promovidas nos Estados Unidos da América, a partir do reaganismo, constituem uma das bases para podermos antecipar as tendências privativistas da escola pública entre nós. E é também um modo de acompanhar as tendências de mercantilização da educação.
Vivemos hoje em sociedades do espectáculo. Espectáculo social, cultural mas também político. O espectáculo político resulta dos interesses das grandes corporações financeiras, industriais e comerciais. «O espectáculo político constrói-se por meio da linguagem, imagens, discursos e através dos meios de comunicação como a televisão, cinema, internet, revistas, jornais, etc. (Edelman, 1988)». E constrói-se utilizando várias estratégias. Cria-se o sentimento de crise do sistema. Escondem-se interesses políticos e económicos por trás da aparência da racionalidade e da livre escolha. Inventam-se inimigos e fantasmas. Define-se o público como espectador passivo, em lugar de um colectivo de cidadãos activos. Estes elementos estão patentes na construção das políticas educativas promovidas nos EUA. E não terão já comissários políticos entre nós?
Submetida a intensa propaganda ideológica, a sociedade americana vê a educação pública em estado de crise terminal. Desarmada criticamente, está aberta a propostas que lhe acenem com um qualquer eldorado educativo.
A construção ideológica da crise, foi feita em torno da ideia de que a falta de competitividade económica do país, a «ausência de valores», a «violência», ou a «proliferação de problemas sociais» se devem a um deficiente sistema educativo público. Embora a realidade mostre que o papel social do sistema público de educação foi, desde o início dos anos 80, reduzido pelo poder à produção de «capital humano» barato e de consumo imediato.
Lá como cá, a crise da escola é uma realidade. Mas as razões desta crise são de natureza estrutural. A crise reside no facto de o modelo em vigor estar pensado para responder à velha sociedade industrial e para a produção de elites operárias e políticas. O que agora precisamos é de inventar outro modelo que responda à sociedade do conhecimento, à democratização do saber e à formação competente e global de todos os cidadãos. Não é uma questão de gestão, nem de público ou privado, menos ainda de mercado. 
Neste combate ideológico, a linguagem tem sido usada pelos neoconservadores para criar heróis e vilões. No panteão dos heróis colocam, entre outros, os «empresários empreendedores», os consumidores, os clientes da educação e o mercado. Do lado dos vilões, está a democracia cidadã a que alguns já vão chamando «campo de libertinagem e de preguiça» e os «burocratas educativos» bem como os professores que ?  sendo do sector público ? já se sabe serem ignorantes, incompetentes, irresponsáveis, oportunistas e preguiçosos.
Este discurso vai buscar a sua autoridade a uma ideologia neoliberal que se apresenta a público como resultante da investigação académica, científica, objectiva, produzida e promulgada preferencialmente por equipas «técnico-intelectuais» (think tanks) subsidiadas por fundações privadas pagas pelas corporações do poder dominante.
A comunicação social faz parte da onda. Nesta sociedade do espectáculo, a maior parte da comunicação social, deixou de ter a informação como sustento da sua actividade transformando-se num mero veículo publicitário. Não se cria uma revista para mulheres por haver informação para lhes dar, mas por haver produtos para lhe vender. A comunicação social, enquanto instrumento publicitário, é altamente receptiva a estas mensagens catastróficas e às soluções milagrosas. Ambas ajudam a vender. Para reforçar a eficiência da propaganda e ocultar o dono da mensagem, contratam-se comentadores da educação, membros da chamada «elite mediática» ao serviço do poder dominante.
Outros quatro sinais desta estratégia são a defesa da escolha da escola (school choice), os cheques-ensino (school youchers), os rankings de escolas e os subsídio ao privado. São meios a reforçar a lógica da escola como produto do mercado da educação e os cidadãos como meros consumidores dela.
A sociedade do espectáculo pede o fim da política, do espirito comunitário, da solidariedade, da ideia de direitos e bens sociais. Para o Estado reserva apenas o papel de zelador de uma certa moralidade pública. Quer substituí-lo pelo mercado e suas leis.
A comercialização da educação é mais um passo a caminho da substituição do Estado ? enquanto expressão da soberania de todos ? pelas corporações dos interesses económicos.
Convém saber como as políticas neoliberais, apoiadas nas novas tecnologias, desenvolvem o seu discurso educativo. Ele pode seduzir as massas menos armadas criticamente e pode ajudar a liquidar as políticas públicas de educação, expulsando desta os que dela mais necessitam. Voltaremos ao tema.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 140
Ano 13, Dezembro 2004

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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