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Raul de Carvalho morreu há vinte anos

Exactamente na véspera de completar 64 anos (3.Set.1984), a morte de Raul de Carvalho chegou em notícia abrupta e calou uma das vozes mais comunicantes da poesia portuguesa do século XX. Sabemos que quem parte leva saudades, quem fica saudades tem, e mesmo na morte deste amigo acontecida há vinte anos ainda nos pesa a sombra da sua presença ou escutamos a voz forte e de comando ao telefone a recitar um poema acabado de escrever. A morte do Poeta de Mesa da Solidão foi adiada por muitos anos nos vários sustos cardíacos que não deixaram de o incomodar, mas de súbito tudo assim se acalmou, as águas e o gesto em suspenso, a palavra silenciada, o corpo hirto, o espírito partiu para longe e a essa ausência não houve apelo que resistisse em hora de mágoa e de tristeza. 
Mas na morte como na vida os poetas sempre arranjam maneira de se salvar, isso é dos livros, tão sagrado como as sagradas águas deste rio revolto em que vamos, nas falsas ilusões que povoam a vida e o destino de uma outra ?glória?, talvez a glória inútil que, como a pureza, nunca foi coisa deste mundo:

Amanhã que é domingo.
havemos de encontrar-nos
mais uma vez no adro,
dando pontapés
na imaginária bola
redonda, do futuro,
correndo, e não sabendo
qual de nós
chegará primeiro,
tendo, em vez de dedos,
nas mãos.
estrelas, muitas estrelas,
e adormecendo em cima do Sol...

Toda a poesia de Raul de Carvalho se determina em vertentes bem definidas: vozes da infância, sombras da paisagem alentejana, um duplo olhar que a vida de tantos anos vividos em Lisboa lhe fez conhecer, a realidade branca da vida e da morte, a serenidade e a solidão no seu canto, no espaço calmo e ocupado, no abandono que marcou de raiva e esperança uma ?poética? que hoje começa a ser estudada no seu exacto sentido literário. Não se forja de muito mais esse ?corpus? inalterável, na redundância e insistência de muitos serem os poemas iguais ou inactuais, de que tinha grande consciência, e a sua arte poética afirma-se em valores humanos e literários que deram sentido à vida. E também à sua morte. Não pelo fatalismo ou desesperança presente em muitos poemas, mas por esse sinal trágico ou maldito de quem recusou integrar-se na sociedade. Nos tempos do fascismo e mesmo nos anos que ainda pôde viver depois de Abril de 1974: ?Não me sinto ?integrado? na sociedade portuguesa: antes me sinto, e de há muito, como que um intruso, um ser que incomoda (e por sinal é verdade), um desmancha-prazeres,um papa--açorda...? (entrevista em ?O Primeiro de Janeiro?, 15.Agosto.1979).
E se muito está ainda por dizer acerca da ?poética? de Raul de Carvalho, é certo que todas as achegas nesse sentido estão longe de ser dadas e não só pelos poemas se poderá entender a justa expressão da sua obra. Muitas as cartas e as anotações de diário que importa conhecer para um juízo correcto do que marcou e foi tão importante em todo o itinerário do poeta de Parágrafos. Não se carrega pela vida fora, no meio de tanta incompreensão e ignomínia, entre muitos atropelos e cansaços, doenças e desesperos de toda a ordem, o sonho de afirmação como poeta, sempre em sucessivas ?edições de autor?, perante o alheamento ou desinteresse dos editores, na amarga e dolorosa peregrinação e reflexo de um querer e  uma autenticidade sem limites. A dimensão humaníssima da obra de Raul de Carvalho, nos mais conseguidos instantes poéticos, no fluxo torrencial de palavras e versos, nos desencontros ou exageros de um ?discurso? por vezes pouco vigiado, anota-se nos valores, emoções e sentimentos que nunca passam despercebidos:

eu nunca tive amor
senão ao vento
ao sol à resina
dos pinheiros
eu tive a solidão
e o amor por companheiros
de que nunca mais me esqueci
eu só pertenço
ao coração que flutua
entre os lavradores
e a seara
e mais perto
da terra que do céu
porque Deus assim o quer.

Se tudo é visão nas linhas poéticas da sua obra, no sentido de que a vida só se faz e refaz nos limites do instante mais imediato, pelos sinais e vozes que chegam de bem longe, nos ecos de infância ou nas desilusões sofridas, na inalterável paisagem alentejana ou nos males trazidos nos ventos da doença, mesmo quando esta foi mais ?moral? do que física, tudo isso perpassa na poesia de Raul de Carvalho como forma e sentido de ter sabido fazer o seu próprio ?casulo? no silêncio e solidão da casa, no abandono sempre desiludido de si mesmo, com muito poucos amigos por companhia e tanto desaforo suportado. Mas essa poética ergue-se humaníssima e é ainda o acto e a confissão de se assumir por esse duplo olhar, não dos outros para si, mas o contrário, em entrega pessoal que não podia deixar de se reflectir em muitos poemas. E, todavia, existem   por aí sinais claros de uma ?religiosidade? que jamais encobriu, não pela presença marcante dos valores de um credo a seguir, mas porque as suas tautologias esbarraram na contradição constante de querer ?estar fora e dentro? da vida, ter um verdadeiro sentido religioso do mundo e ser assim um poeta do seu tempo, muito atento aos marcos essenciais deste tempo e mundo, sem nada poder fazer para os emendar ou alterar. E, por isso, nas posições defendidas por Raul de Carvalho, a palavra sempre se afirmou como uma ?arma? utilizada em todas as direcções: no amor, na morte, na revolta, na alegria, na desilusão, na doença e na absoluta serenidade que nunca o abandonou. Apesar de tudo.

Vem serenidade
e lembra-te de nós,
que te esperamos
há séculos sempre
no mesmo sítio,
um sítio aonde a morte
tem todos os direitos.

Foi longo e penoso o itinerário percorrido entre As Sombras e as Vozes (1949) e Mágico Novembro (1983), mas existem alguns ?marcos? importantes no meio desse trajecto, como Parágrafos (1956), Talvez Infância e Realidade Branca (1968), Duplo Olhar (1978) ou Elsinore (1980). Não é, como sabemos, uma poesia elaborada no rigor expressivo, trabalhada e depurada até ao cansaço. Antes se trata, é verdade, de uma poesia descarnada, sentida, pressentida na sua clara expressividade, como um rio caudaloso que arrasta na corrente tudo o que aparece à superfície. Entre o acerto do verbo e o fremir da emoção, em espaço e tempo que percepcionou ao sabor dos momentos sentidos e entendidos, a poesia de Raul de Carvalho consubstancia-se na simplicidade formal, na inspiração ou emoção conduzida pelo declarar de sentimentos e emoções, muitas vezes num discursivismo torrencial bem pouco controlado. O que escreve - fica, o poema surge sem retoques, quase sem emendas. E daí os seus desajustes, os altos e baixos que  se observam de livro a livro, de poema a poema: não cerzindo o poema, não desbastando as palavras, não rasurando o verbo, toda a  ?poética? do autor de Elsinore se afirma pelos caminhos de uma certa irregularidade, simplicidade ou inferioridade, mas com alguns ?picos? de evidente genialidade. E isso importa ter em conta.
Lida com atenção nas linhas de força de uma autenticidade que se não desmente ao longo de mais de trinta anos, toda a obra de Raul de Carvalho se define como a exponência de um ?discurso? tutelado e não vigiado, sentido e sincero nos limites da sua mais profunda depuração discursiva - uma depuração feita por dentro e não em ?trabalho poético? que sempre se recusou fazer. E disso se não pode penitenciar quem a considera uma ?poesia menor? em confronto com outros valores hoje tão importantes na moderna poesia portuguesa. De resto, dizê-la ?menor?, e tal não implicar um claro juízo de valor, é ainda o reconhecimento de que nos simples valores em que se joga, nas palavras carregadas de sentido e entendimento imediato, se reflecte uma poesia que é legível e entendível no seu ?corpus? e na ?estrutura? verbal, sem arrebiques, sans ambages, como o Poeta dizia muitas vezes: é uma poesia feita de vida, na mitologia do sangue, esclarecedora dessa visão global de toda a poesia de Raul de Carvalho. A sinceridade que a marca, dentro de uma assumida ?estética da banalidade?, define o seu modo de ser e de estar na vida, assumindo ou reassumindo, em calorosa vaga de fraternidade e comunhão humana, o sentido mais autêntico como homem e como poeta. Sempre.
Mas, na passagem dos vinte anos da morte de Raul de Carvalho, podemos ler todos os seus livros reunidos na edição da Obra Poética e, ainda e sempre em sua memória, proclamar com Jorge de Sena que ?pelo fôlego torrencial e pela intensidade vibrante da expressão que tudo carreia, desde os entusiasmos fugazes às emoções mais profundas, desde as atitudes formais à dolorosa consciência da dignidade humana?, o autor de Talvez Infância é, sem dúvida, um dos maiores líricos deste nosso tempo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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