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Matinés Dançantes

Uma cartolina manuscrita colada na parte interior de uma vidraça anunciava: Matinés Dançantes. Era no salão que Artur passava os Domingos à tarde.
Artur ficara viúvo aos 49 anos. A mulher morrera sem que nada o fizesse prever. Cancro no estômago. Sem filhos, sem família próxima viva, sem amigos chegados. Restavam os colegas da firma.
Durante a semana, o trabalho fazia-lhe companhia. O pior era à noite. Por vezes jantava numa tasquita perto de casa. Havia sempre quem fizesse o mesmo, o dono era bom conversador e passavam-se ali umas horitas animadas. Outras vezes nem jantava propriamente. Estrelava um ovo e fritava umas batatas. Aquecia uma tigela de sopa que fazia para toda a semana. Comia uma fruta. Via televisão. E deitava-se.
Aos fins-de-semana as coisas não corriam assim tão bem. Pensava mais na mulher. Tinha saudades de ir com ela ao mercado no Sábado de manhã. Do cheiro dos assados de Domingo. Ligava o rádio no programa de fados que ela costumava ouvir e deitava-se no sofá. A melancolia tomava conta da casa. Raras vezes não chorara.
Soubera das Matinés Dançantes por um colega do trabalho. «Podias ir, há lá muita gente como tu!» No início Artur ficou de pé atrás. Imaginou uma boîte cheia de viúvos babados e solteironas feiosas. Mas a solidão acabou por vencer o preconceito. Assim deu consigo numa tarde de Domingo à porta do salão a pensar: «Vou só ver o ambiente.»
Ao fim de quatro semanas já tinha tomado o gosto àquilo. Começava até a arranjar-se como nos tempos em que passeava ao Domingo de braço dado com a mulher. No salão, a música abafava os pensamentos que lhe iam na alma.
Era um dos primeiros a chegar. Ocupava a melhor mesa com vista para a pista, pedia um gingerale e ligava o candeeiro para poder ser visto. Acalentava agora a ideia de ainda poder refazer a vida. Com uma mulher da sua idade, não precisava ser muito bonita. Bastava que fosse sozinha, como ele. Divorciada ou viúva. Podia ter filhos já criados ou até ainda por criar. Não fazia diferença. Teria dado um óptimo pai, não fosse vontade da falecida mulher não ter prole.
Os Domingos sucediam-se. Mas foi preciso esperar três meses até que Artur conhecesse Marta. Não era, por assim dizer, por ela que ele esperava. Marta tinha 29 anos e podia bem ser sua filha. Por acaso não era. Era filha do porteiro. Começara a trabalhar no bar do salão aos fins-de-semana quando a clientela era maior.
Os dois entenderam-se às mil maravilhas. A mesa com vista para a pista tinha agora um novo dono. Artur sentava-se ao balcão para poder conversar com Marta. «Um amor de rapariga», comentava com os colegas da firma na hora do almoço. Cabelo preto aos cachos, formas redondas, óculos ovais, baixinha, sempre sorridente e boa conversadora. «Um verdadeiro achado», retorquia quem escutasse a descrição de Marta. Havia porém um senão na rapariga muito difícil de ultrapassar: o porteiro.
Assim que os encontros de Artur e Marta se mudaram para fora do salão, o pai começou a agir como tal. Cara torcida, palavras secas, eram agora os substitutos das cordiais «boas tardes» e do delicado «tudo bem consigo?». Fosse Artur mais jovem e estaria-se nas tintas para o porteiro. Assim, com os seus 50 anos estava condenado à compreensão.
Resignado com a oposição paterna ao romance, que crescia à medida que os encontros aumentavam, Artur chegara a pensar em abandonar Marta. Os colegas demoveram-no da rendição: «Isso é tudo medo do ?sogro??» Longe disso, o que Artur queria era evitar o confronto com o porteiro. Afinal um sujeito da sua idade. Ambos deviam dar-se ao respeito.
Mais Domingos se passaram até que Artur tomou uma decisão. Foi falar com o porteiro. Disse-lhe que «tinha intenções sérias e que gostava de Marta». Ouviu o homem dizer que a filha também se confessara apaixonada. E sentiu a frustração do pai ao dizer que preferia ver a filha com um «rapaz da sua idade». Sem coragem para se afastar de Marta, Artur conseguiu apenas lamentar o acaso que os unira. Vendo tal atitude, o porteiro rendeu-se. Prometeu ser condescendente com o namoro e fez apenas um reparo que considerou ser «de amigo»: «Não se iluda muito...»


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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