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Facilitismos (III)

Quem nunca experimentou a deprimente paisagem de um espaço a abarrotar de examinandos amontoados ao fundo, mesas da frente desertas, pastas, livros, malas e carteiras de senhora amontoados no fundo da sala? Edificante, não é?

Mais um contributo para desassossegar os espíritos e relançar a discussão?
Recordo-me bem dos rituais a que fui sujeito, aquando da minha passagem por alguns cursos universitários. E quem passa pelas humilhantes situações por que passei entende na perfeição o porquê de se erigir os facilitistas exames em mito redentor dos desacertos do sistema. Quem nunca experimentou a deprimente paisagem de um espaço a abarrotar de examinandos amontoados ao fundo, mesas da frente desertas, pastas, livros, malas e carteiras de senhora amontoados no fundo da sala? Edificante, não é?
Um cândido candidato a professor confidenciou-me a sua perplexidade: ?Então, quer saber que as minhas colegas de curso copiam a bom copiar nos exames. E, quando lhes perguntei se achavam correcto o seu comportamento, encolheram os ombros e riram-se na minha cara. Mas o mais incrível é que, quando lhes perguntei se, quando viessem a ser professoras, permitiriam que os seus alunos também copiassem nos exames, responderam-me: ?Era só o que faltava!? Eu nem queria acreditar?? Nem eu! Mas, reconheçamos (adeptos, ou críticos dos exames) que é mesmo assim. E estes tristes ?derivados? dos exames são apenas a ponta de um iceberg, que esconde o facilitismo de tirar cursos parasitando trabalhos de grupo e copiando? em exames.
Ainda não nos apercebemos dos efeitos colaterais que uma avaliação sucedânea da hegemonnia de testes e exames provoca nos processos de avaliação sumativa e na sua transposição para escalas ordinais de classificação? Ainda não nos apercebemos do facilitismo de uma avaliação que passa por uma terminologia marginal a qualquer dos normativos em vigor? Há dias, no intervalo de um seminário, uma professora lamentava-se nos seguintes termos: ?Agora, parece que já não sei ensinar. Até agora, ninguém nos pedia mais do que dar ?um dez? ou ?um oito?, um ?suficiente menos?? As ridículas designações de ?Razoável Mais?, ?Excelente Menos?, ?Mediocre Interrogado?, ?3 Mais?, ?4 Menos?, ?Sofrível?, ?Péssimo Mais?, ?Suficiente Menos Menos?, ?Reduzido Mais?, são manifestações de um senso comum que uma formação inicial não contrariou e à qual a formação dita contínua vai fechando os olhos.
A sequencialidade regressiva ? o Secundário atira a culpa para o Básico, o Básico para o Jardim-de-infância e este, por sua vez, atira as culpas para as famílias ? é uma praga que vem condicionando as iniciativas dos legisladores e deitando a perder todo e qualquer esforço de mudança no campo da avaliação. Será difícil perceber que não é com mais exames facilitistas que se conseguirá redimir o sistema de todos os males que o afectam? Ainda não se percebeu que o sistema é passível de melhorar se os professores deixarem de perder tempo a ensinar para exames? É assim tão difícil entender que do que se decora para um exame, e depois de ?vomitado? se esquece, pouco ou nada fica?
Não falo de cor, e posso provar que alunos que praticam uma avaliação menos dependente de testes e exames obtêm os melhores desempenhos nos testes que fazem nos ciclos de ensino subsequentes? e os melhores desempenhos em exames nacionais!
Aos professores que ajudam a perpetuar facilitismos recomendaria que, já hoje e antes que seja irremediavelmente tarde, se dispusessem a fazer um esforço de compreensão, se interrogassem. Os professores são pessoas inteligentes, e a trabalhadores intelectuais está interdito não fazer o uso devido do intelecto.
Aos autores das pérolas de senso comum que vão contribuindo para reproduzir e reforçar uma avaliação facilitista, recomendaria um pouco mais de tino e humildade. Se aos amadores não se pode exigir um saber profissional, apelo para o exercício de um bom senso que nos livre, de vez, de comentários facilitistas. Como escrevi ? há muitos anos, que a discussão em tornos dos exames não é novidade ? alguns comentadores são como cegos num labirinto. Ainda não entenderam que um normativo de 1976 foi certidão de óbito dos exames da quarta classe, mas que os exames se mantêm vivos nas representações e activos nas práticas. Como vimos recentemente, despertam como vampiros, em noite sem luar, porque ao que é sombrio não agrada a luz. E não são apenas de hoje as diatribes dos responsáveis pela gestão do nosso malfadado sistema educativo. Já em 1977, as orientações do ministério continham ambiguidades que viriam a abrir caminho aos facilitismos que larvarmente proliferaram no húmus da ambiguidade: "talvez que, em Portugal, quando na escolaridade obrigatória para todos não houver diferenças tão significativas, o problema se coloque de modo diverso; talvez, então, o termo exame venha a ser substituído pelo de prova, teste ou outra designação adequada". Pelo subido coturno deste normativo se depreende que, para o ministério de então, tudo não passaria de uma mera questão de terminologia?
O resultado de décadas de ambiguidade e fatais hesitações está à vista de quem quiser ver: para um ?ensino em massa?, aulas para o ?aluno médio? (mesmo quando o dito ?aluno médio? falta à escola e não se sabe para que aluno vai ser dada a aula?); para a selecção dos ?menos aptos?, nada mais indicado que o facilitismo de um exame. E tudo a bem da nação.


  
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Edição:

N.º 137
Ano 13, Agosto/Setembro 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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