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Ar de médico

Uma vez por ano a rotina impunha-se. A consulta do coração de Ermelinda, senhora sua mãe, era um acontecimento merecedor de bolinha vermelha no calendário de cozinha de Alzira. Era preciso lembrar ao patrão que nessa manhã não contasse com ela e prometer compensar as horas perdidas em altura de maior movimento na loja. Era preciso lembrar ao marido para comprar o lanche dos miúdos na padaria perto da escola, para se manter fresco até à hora do recreio, e pedir-lhe, por amor de Deus!, para ignorar as súplicas por batatas fritas. Finalmente, era preciso ameaçar os miúdos, ai deles!, para não empatarem o pai com as manhas matinais do «Oh! não quero esta camisola, Oh! deixa-me levar a bola, oh, oh, oh?»
O dia da consulta, para Ermelinda, não suscitava tanta azáfama. Mas impunha um certo cerimonial. Como o de estrear pelo menos uma blusa. Os seus 74 anos conservavam a vaidade da meia-idade. Por isso não se cansava de reprovar na filha o que dizia ser o seu ?ar abandalhado?.
Nessa manha, Alzira deixara para trás a casa numa bagunça apenas vestindo calças de ganga e t-shirt. Como de costume, Ermelinda não deixara escapar a oportunidade para o seu reparo. Alzira zangara-se. «Bolas! A mãe dá-lhe com isso!!! Se tem tempo para se aperaltar o proveito é seu!» E assim chegaram ao hospital num silêncio amuado.
Como a espera ia ser longa, Alzira insistiu numa ida ao café para tomar o pequeno-almoço. Ermelinda acedeu, um pouco a contra-gosto, afinal já eram 8h15 e a consulta estava marcada para as 9h30... Mas enfim? As duas lá arranjaram uma mesa à janela.
Enquanto Alzira pedia a torrada e a meia de leite, Ermelinda fixara os olhos num episódio que ocorria mesmo à sua frente. Quatro idosas, um tanto ou quanto ridículas aos seus olhos, hesitavam entre as duas únicas mesas livres no café. Já estavam há uns bons cinco minutos de pé quando um cliente recém-chegado apercebendo-se da indecisão se sentou deliberadamente numa das mesas acabando com o drama da escolha. Muita gente riu. Inclusive os empregados. Mas a plateia sénior ficou indignada com a ?falta de educação? do cliente. A agravar o facto de ser um rapaz jovem de aparência desmazelada. O olhar reprovador de Ermelinda tinha encontrado nova distracção.
Instalando-se, o jovem distribuiu os seus haveres, mochila, livro e um saco plástico com uma coisa branca lá dentro, pelas três cadeiras que lhe sobravam e foi ao balcão buscar o jornal. Minutos depois o empregado trazia-lhe um copo de leite e um café. Ele misturou-os e pôs-se a ler a última página. «Que estupidez, pensou Ermelinda, então não era melhor pedir logo um galão?» Engolido o primeiro trago o rapaz ergueu a cabeça para o empregado e gritou amistosamente: «Não se esqueça da minha torrada sem manteiga!» O último pedido ditara a sentença de Ermelinda: o rapaz não era bom da cabeça. Alias, os jovens não prestavam mesmo para nada. Faltava-lhes a decência, o respeito... Estava Ermelinda a divagar mentalmente quando Alzira a interrompeu: «Vamos indo?»
Uma hora depois, uma voz de intercomunicador ecoava na sala de espera: «Dona Ermelinda Pereira à sala 3.» Ao entrar no consultório o coração de Ermelinda quase parou. Na cadeira do médico estava o rapaz do café. «Sentem-se, por favor?»
Seguiram-se os trâmites do costume. Alzira mostrou ao médico o último electrocardiograma da mãe. Ele viu-o, disse que estava ?tudo bem?... A ficha clínica dizia que a paciente sofria do coração há mais de 20 anos, por isso, Ermelinda, obviamente, já sabia que não devia fazer esforços, nem ter grandes preocupações e de resto era só continuar a tomar a medicação prescrita.
Aproveitando a deixa do médico sobre as preocupações Alzira queixou-se que a mãe estava cada vez mais rezingona, sempre a implicar por tudo e por nada? «O mau feitio não prejudica o coração?», gracejou Alzira. O médico riu. Voltou a insistir no descanso. Mas ao ver o silêncio estupefacto da paciente face a tanta ?acusação? e acreditando na tese acabada de ouvir interpelou: «Não se está a sentir bem?»
Ermelinda olhou para a filha. Olhou para o rapaz e balbuciou: «Você não é o meu médico!» O rapaz franziu o sobrolho, olhou para ficha e exclamou: «Ah, desculpe, devia ter-lhe dito, a senhora era paciente do Dr. Isaltino? Ele reformou-se há cerca de meio ano e os doentes dele passaram para mim. O meu nome é Rui, a partir de hoje sou o seu médico!»
Ermelinda suspirou pouco convencida. Não que idolatrasse o doutor Isaltino, sempre carrancudo e de resposta seca. Mas pelo menos esse tinha ar de médico. Rosto sério. De quem pouco erra. Já este?
«É mesmo médico, ou ainda está a estudar?», inquiriu recuperando o seu estado de espírito. O rapaz deu uma gargalhada avivando em Ermelinda a cena do café. «Sou mesmo médico!», retorquiu. Ermelinda hesitou. «Pois não tem ares disso! O doutor Isaltino usava fato e gravata por baixo da bata branca!» Sem querer contrariar a paciente, o médico nada disse. Pegou na caneta e escrevinhou algumas linhas na ficha de Ermelinda. Quando terminou olhou-a com um ar esforçado de sisudo. «Pois bem dona Ermelinda não vou prejudicar a sua saúde com tantas preocupações!» Dizendo isto, levantou-se para acompanhar mãe e filha à saída. «No próximo ano, quando vier à consulta, estarei à sua espera verdadeiramente vestido de médico!», anunciou e fechou a porta, para poder rir à vontade.


  
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Edição:

N.º 136
Ano 13, Julho 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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