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Propriedade intelectual também propriedade privada?

É muito interessante observar o processo de apropriação privada, por parte dos poderes económicos, e da reacção e luta em contrário, por parte da população informada e particularmente de investigadores e associações de base profissional.

?Propriedade intelectual? é um termo que se tornou corrente no discurso oficial. O âmbito da sua aplicabilidade é vasta e o conceito não deve ser simplificado e muito menos abordado segundo figurino único.
Mas a verdade é que a sua utilização em termos oficiais se confinou à propriedade ou à apropriação privada de conhecimento para se transformar sobretudo numa mercadoria e num negócio. Isso veio a acontecer na medida em que o registo de patente de invenções ou de direito de publicação de obras foi largamente transgredido, a ponto de as patentes e os direitos terem passado a abranger objectos ou métodos que são património comum, natural (como códigos genéticos) ou humano (como conhecimentos empíricos ou racionais e mesmo processos mentais) e as patentes se terem tornado em títulos transaccionáveis que alimentam quer as indústrias estabelecidas quer, agora também, a ?carteira de valores? de um vigorosamente emergente sector especializado neste negócio.
É muito interessante observar o processo de apropriação privada, por parte dos poderes económicos, e da reacção e luta em contrário, por parte da população informada e particularmente de investigadores e associações de base profissional. Um domínio que podemos escolher é o dos programas (apoiados em códigos e estruturas) que operam os computadores para as mais variadas finalidades. Por um lado observamos forças actuando pela imposição do patenteamento automático e estrito desses programas, e portanto a sua detenção privada. Por outro observamos forças defendendo cívica e tecnicamente a universalidade do acesso a esses programas, incluindo os seus códigos e estruturas; daí os conceitos de software livre e de códigos abertos.
A propriedade intelectual começou por não existir! Até ao Renascimento parece ter havido livre curso de ideias, de textos e de conhecimentos técnicos. Os poetas e os músicos não só se copiavam como tal forma de emulação era considerada virtuosa. Os alvarás e privilégios que a Coroa concedia eram privilégios de monopólio que garantiam a viabilidade ou encorajavam o empreendimento, mas o que estava em causa era a actividade e não o método. Mas o curso iria mudar.
Em Inglaterra, em 1624, a Lei do Monopólio (Monopoly Act) permitia a atribuição de monopólios com o fim de criar receitas para a Coroa; após renegociação com o parlamento, esse benefício ficou restrito a invenções. Em 1709, a Lei de Autor (Copyright Act), mais precisa e restrita, visava o estímulo da Cultura, conferindo aos autores e compradores o direito às cópias de seus livros por tempo determinado. Em 1787, a constituição dos EUA consagrava as patentes de inventos e os direitos de reprodução como instrumentos para a promoção do progresso da Ciência e das Artes Liberais. Em França, nos anos da Revolução Francesa confrontaram-se argumentos a favor e contra o ?direito natural? à propriedade intelectual; e foi nessa França revolucionária que se proclamou o princípio legal do direito de autor (leis de 19 de Janeiro de 1791 e de 19 de Julho de 1793), reconhecendo-o como propriedade. Em 1886, as principais potências europeias reuniram os seus embaixadores em Berna para elaborarem os fundamentos de uma União Internacional, adoptando uma lei básica, geral e uniforme, para a protecção das obras artísticas, literárias e científicas, a Convenção Internacional de Berna, que seria actualizada em 1911 e 1976. Outros instrumentos importantes são a Convenção Universal sobre Direito de Autor (UNESCO; Paris - 1971) e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio ? TRIPS (Marraquexe - 1994).
Em Portugal a primeira legislação data de 1851, quando foi aprovado um projecto apresentado às Cortes por Almeida Garrett. Em 1911 Portugal aderiu à Convenção de Berna, o que levou à actualização da legislação. Aquando da adesão à Convenção Internacional assinada em Genebra, surge entre nós um Código de Direitos de Autor. Em 1985 veio a ser aprovada pela Assembleia da República o código actualmente em vigor.
Em 1973, representantes dos governos europeus reunidos em Munique delinearam uma Convenção Europeia de Patentes (EPC) e as bases de um Registo de Patentes Europeu (EPO). Programas para computador, aplicadas à execução de cálculo ou ao comando de máquinas, regras mentais e algoritmos matemáticos foram considerados não patenteáveis. A orientação normativa e a prática judicial subsequente confirmaram esse princípio. Porém, a partir de meados da década de 1980, essa interpretação começou a ser desvirtuado por tribunais nacionais e mesmo pelos juízes do EPO. Desde então a batalha jurídica tem prosseguido, reflectindo questões filosóficas e mais evidentemente interesses económicos.
Em 1997 a Comissão Europeia viu necessidade de avançar com um ?Livro Verde? que fundamentasse uma proposta de alteração à Convenção Europeia, particularmente no que tocava à legislação aplicável ao software. Mas em Setembro de 2003, o Parlamento Europeu apreciou a proposta legislativa e introduziu-lhe numerosas alterações, de facto pronunciando-se pela manutenção da exclusão de software como objectos patenteáveis. O Conselho de Ministros da União, inconformado, tem já em apreciação um ?livro branco? com contra-propostas para que a matéria seja reexaminada pelo Parlamento afim de que, em substância, todos os códigos e software sejam automaticamente patenteados. Este ?livro branco? e a insistência junto do Parlamento testemunham bem a força dos grandes interesses económicos e as grandes pressões que exercem sobre os órgãos de governo da União.
O que pensa o leitor?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora
Rui Namorado Rosa
Univ. de Évora

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