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O Muro

A aula decorria monótona e rotineira. Jorge elaborara um teste de avaliação para esse dia.
Preparava-se para distribuir as fichas quando batem à porta. Com ar tímido, Pedro, um negrito de olhos brilhantes, assoma à porta.
? Fsôr, posso entrar?
? Ao que vens?
? A directora mandou-me para aqui. Na minha sala não gostam de mim.
Jorge, meio aborrecido, resmoneia entre dentes:
Só me faltava este. Os restos vêm-me sempre cair aqui. Já não me bastava o Fábio e o Daniel.
Quase irritado,  preparou-se para ir à reprografia fazer mais uma cópia de emergência.
Conhecedor do que a casa gasta, trancou a porta por fora. Não seria a primeira vez que um gaiato se escapulia.
Providencialmente ali mesmo se encontrava a Senhora Arminda, velha relíquia e velha jóia querida da casa. Dir-se-ia que pertencia já à mobília.
Com a afabilidade costumada prontificou-se a ir fazer a fotocópia para as ovelhas não ficarem sem pastor.
Naquele momento, como num filme, pensamentos sombrios perpassaram pela mente de Jorge.
Uma depressão, inexplicável à luz da razão, assaltava-o desde há uns trinta dias bem contados. A sua tendência para a introversão agravava e ampliava em efeito lupa os pequenos choques da vida quotidiana.
Sem que desse por isso, um dia acordou de coração acelerado e a cabeça gelada, escorrendo suor. Desde aí não tinha sido ainda capaz de racionalizar os motivos de tal situação.
Apenas uns dias atrás declarara expressamente a Leonor o seu estado. Esta com a sua paciência, carinho e sabedoria prática da vida, vinha sendo, desde então, um elemento fundamental no equilíbrio instável de Jorge.
Com gesto brusco, como quem sacode o pó do casaco, Jorge afastou tais pensamentos e abriu a porta.
O tempo curto  que mediou entre a saída e a entrada na sala, não fora suficiente para que os jovens ultrapassassem a fase da surpresa e passassem à da balbúrdia.
Em gestos mecanizados, Jorge iniciou a distribuição das fichas.
Não passavam dois minutos, batem à porta. Com um sorriso Dona Arminda entregou as folhas ao professor. E ali mesmo lhe segredou algo para si inexplicável:
? Não  se esqueça do muro.
? Do Muro?
? Sim do muro de Berlim.
Aí Jorge lembrou-se. Nesse dia eram os 12 anos da queda do muro de Berlim e uma circular estava afixada à entrada da sala dos professores solicitando aos colegas que não deixassem de dizer algo sobre o significado e simbologia de tal acontecimento.
Sem vontade, Jorge pensou o que diria o muro a crianças que nem sequer eram nascidas naquele dia. E cujo único ponto de referência, para  a maioria, era o lixo que todos os dias lhes entrava pela casa dentro através dos televisores.
Mas cumprindo um ritual começou:
? Meus meninos, nunca gostei de comemorar dias disto ou daquilo. Mas hoje comemoram-se 12 anos que a queda de um muro mudou muito a maneira de viver de muita gente.
Aqui parou para ver as reacções das crianças. Admirado, verificou que um silêncio religioso imperava e que cinquenta e dois olhos, entre eles dois mais brilhantes que todos os outros, o fitavam com expectativa.
Veio-lhe então à lembrança a máxima de um seu amigo, fotógrafo amador, a qual o vinha inspirando durante todos estes anos de profissão:
«O bom fotógrafo é aquele que sabe descer a objectiva ao nível dos olhos da criança».
Animado por início tão auspicioso, tomou balanço e continuou:
? Berlim é uma bela cidade, onde um dia um país muito grande, a Rússia, colocou arame farpado com mais de trinta quilómetros de perímetro para que as pessoas que viviam do lado da cidade  dominada por eles não pudessem passar para o outro lado.
? Este arame foi colocado durante a noite. E, estão a ver? Houve pessoas que, por motivos do seu trabalho tiveram de passar a noite do lado de lá e já não puderam regressar. E assim, da noite para o dia, muitos pais deixaram de poder ver os filhos, mulheres deixaram de poder ver os  maridos.
? Ao correr do tempo, o arame farpado foi sendo substituído por um alto muro em cimento. Em menos de um ano, Berlim era uma cidade dividida. O ódio de alguns desfez a vida de muitos.
? Policias e cães treinados guardavam o muro. E muitos dos que tentaram ultrapassá-lo foram abatidos friamente...»
Jorge parou novamente. Um frémito perpassara pela sala quando estas últimas palavras foram ditas.
"Devo dizer-vos que estive em Berlim por duas vezes e vim de lá muito triste. Do lado ocidental, livre, a cidade pulsava e vivia com grande alegria. Do lado oriental, sob a pata do inimigo, a desolação era total. Não se via quase ninguém nas ruas. Largas avenidas bordejadas de prédios imponentes estavam praticamente vazias e, de longe em longe, lá passava um carro, descolorido e de modelo antigo e muito feio."
Aqui começaram as perguntas: professor isto, professor aquilo...
A mensagem tinha sido apreendida.
Felizmente, precisamente há doze anos, a vontade do povo dos dois lados venceu. Munidos de pás e picaretas, deitaram o muro abaixo.
Logo a seguir caiu o governo que provocara esta situação e hoje Berlim é uma cidade livre, em que todos, orientais e ocidentais, têm direitos iguais, oportunidades iguais e são amigos uns dos outros.
A mensagem tinha passado. Um entusiasmo pairava na sala. Houve mesmo palmas. Jorge sentiu que conseguira um discurso acessível a estas cabecinhas infantis. Sentia-se satisfeito.
Avesso e alheio porém que sempre fora a «mensagens de paz» quantas vezes emanadas de cabeças pensantes que, em família ou no ambiente de trabalho,  não punham em prática as suas palavras, achou Jorge ser altura de adaptar a comemoração ao «aqui e agora» daqueles seus queridos pupilos.
Ciente de que dominava a situação, quando a calma voltou a reinar, respondidas as perguntas ora ansiosas ora curiosas daqueles jovens, continuou pausadamente:
"Já pensastes quantas vezes nós próprios levantamos muros entre nós e aqueles que nos rodeiam?
- Qual de nós nunca levantou um muro a um pobre porque eu sou rico?
- Qual de nós nunca levantou um muro a um gordo porque eu sou magro?
- Qual de nós nunca levantou um muro a um muçulmano porque sou cristão?
Amadurecido o fruto podia já perguntar:
? Qual de nós nunca levantou um muro a um negro, porque sou branco?
Neste momento, olhando para a última fila, pôde ver, não sem uma ponta de emoção, que o Fábio pousava a mão sobre o ombro de Pedrito. Este, com a satisfação estampada no rosto, aceitava o carinho e mais se aconchegou ao colega.
A campainha toca. Tempo para o teste não houve sequer.
Os alunos saíam em tropel. Para o fim ficou uma criança negra. Com certo acanhamento aproximou-se de Jorge. Como que requerendo uma aproximação física exclamou:
? Fsôr, gosto muito de si!
Jorge beijou-o e saiu nesse dia da escola mais feliz.


  
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

João Miguel Cunha
Professor Aposentado de Educação Musical
João Miguel Cunha
Professor Aposentado de Educação Musical

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