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"A escola tem de estar preparada para ir ao encontro das normas culturais das crianças ciganas"

Filomena Moreno é Mestre em Relações Interculturais pela Universidade Aberta e professora do ensino básico, tendo participado em diversos projectos institucionais relacionados com a cultura cigana. É também a autora do livro "Etnia cigana: relação homem-mulher" - recentemente editado pela Editorial 100 - onde estuda o conhecimento dos estereótipos de género em crianças ciganas e analisa de que forma esta percepção influi na escolarização das crianças e dos jovens desta etnia.

De onde surge o seu interesse pela comunidade cigana e o que a levou a conduzir este trabalho?

O interesse surgiu do convívio junto das crianças ciganas na escola da Biquinha, onde leccionei. No dia-a-dia observava situações em que era evidente o choque de culturas presentes na escola, apesar de haver diálogo, aceitação da diferença e práticas multiculturais.
Eram muitas as interrogações para as quais não conseguia obter respostas. Os comportamentos diferenciados, as crenças e convicções das crianças levaram-me a uma profunda reflexão e a traçar um caminho que me conduziu a um melhor conhecimento do povo cigano. Povo com costumes, cultura e vivências muitos próprias.

Refere que as crianças ciganas, particularmente os rapazes, têm normalmente dificuldade em aceitar ordens das professoras, atitude que deriva dos valores e da cultura que apreendem ao longo da infância e juventude. Que obstáculos pode esta atitude criar na escolarização das crianças e jovens ciganos e de que forma pode ser ultrapassada?

Quando entram na escola, as crianças ciganas deparam-se com um mundo novo onde lhes são transmitidas normas culturais diferentes das do povo cigano. Encontram outras regras que não são as suas. Os rapazes devem submeter-se à autoridade da professora, enquanto que em casa eles dão ordens às irmãs e, muitas vezes, à mãe.
A educação da criança cigana começa na sua família e na comunidade onde vive e nota-se, efectivamente, diferença entre os sexos logo na infância. As crianças são socializadas de maneira diferente, conforme o sexo e de acordo com expectativas, papéis e tarefas que desenvolverão no futuro.
As meninas começam muito novas a aprender com a mãe a tratar da casa e a cuidar dos irmãos mais novos. Os rapazes, não enquanto pequenos, mas logo que possível, aprendem uma actividade junto do pai.
Estas diferenças culturais podem gerar conflitos que tendem a aumentar se o professor não conhecer a cultura cigana. Por isso, a escola tem de estar preparada para ir ao encontro das normas culturais das crianças ciganas. Penso que só assim se conseguirá que elas estejam disponíveis para ouvir os valores e atitudes da cultura dominante.
 A escola é fundamental para mudar mentalidades, quer da parte cigana, quer da não cigana, mas é preciso que as crianças a frequentem. Os professores são os ?actores? principais do sistema educativo, para a escolarização das crianças ciganas. Assim, torna-se necessário facultar-lhes formação para que eles possam aderir a práticas de Educação Multicultural.
Por outro lado, penso que os professores das crianças ciganas deveriam resultar de uma escolha pessoal e terem a possibilidade de se manterem nessas escolas, o que não está a acontecer, de todo, neste momento. Na escola onde leccionei, o sucesso escolar passou de 40% para 70%. No entanto, não foi permitido o destacamento aos professores a fim de continuarem a desenvolver o projecto que era considerado de sucesso.
 
De acordo com os resultados do seu estudo, a visão estereotipada das crianças e jovens ciganos em relação ao papel do homem e da mulher na sociedade não difere em muito da comunidade dominante. No entanto - e apesar de a mulher cigana ter um papel fundamental no seio da sua comunidade -, as raparigas não têm as mesmas oportunidades de escolarização de que beneficiam os rapazes. De que forma pode a escola - eventualmente recorrendo à ajuda exterior, nomeadamente dos mediadores - contribuir para a inversão desta situação?

O estudo teve como objectivo saber se as crianças ciganas conhecem os estereótipos de género. Os dados confirmam que as crianças ciganas, de ambos os sexos, conhecem os estereótipos do género. A identificação dos estereótipos femininos  ocorre mais facilmente que a dos masculinos, em ambos os escalões etários.
Isto parece estar relacionado com o facto das crianças quando pequenas passarem a maior parte do tempo com elementos femininos da família, principalmente com a mãe auxiliando-a nas tarefas domésticas e demais actividades. Ela desempenha um papel importante na coesão familiar, na educação dos filhos e das filhas até ao casamento. São elas que transmitem a cultura cigana aos filhos, mas da qual não faz parte a escolarização das crianças.
Efectivamente, a vontade dos pais em que os filhos frequentem a escola e obtenham sucesso tem aumentado, mas as expectativas são diferentes conforme o sexo. A questão das raparigas continua a ser um problema. As mães e os outros adultos não atribuem importância à sua escolarização pelo facto de serem mulheres. Elas têm a obrigação de ajudar a mãe nos trabalhos de casa e de cuidar dos seus irmãos. Também existe o medo de que as meninas ciganas se relacionem com rapazes não ciganos.
Penso que é importante que se promova a relação escola-família para que a etnia cigana confie na escola, tal como a participação do mediador cultural que facilitará esta aproximação. A sua implementação nas escolas é uma necessidade para a escolarização das crianças ciganas. Ele tem conhecimentos, tanto da cultura cigana como da instituição, estabelecendo, desta forma, a ponte entre a escola e comunidade cigana.
Com a sua presença na escola, os pais ficarão mais confiantes e, acredito que, com estas condições, aumentará a escolarização das crianças ciganas, principalmente das raparigas que são as que abandonam a escola mais cedo.
Mas, importa formar pessoas que valorizem, coordenem e consciencializem a população. Por outro lado, a escola também deve receber formação para receber o mediador cultural. O trabalho deverá ser desenvolvido em conjunto para ser um projecto com sucesso. Desta forma, a comunidade cigana permitirá a escolarização das meninas ciganas porque ele será os olhos da comunidade.

Citando Mirna Montenegro, investigadora do Instituto das Comunidades Educativas, é referido no seu livro que "quando a escola tem um número elevado de crianças ciganas, há mudanças nas práticas do ensino-aprendizagem e toda a escola é implicada na procura de soluções; quando o número é reduzido, a escola tenta aculturar e assimilar as crianças ciganas, levando ao seu afastamento". Isto significa, em princípio, que a escola, enquanto instituição, não tem uma prática coerente no que diz respeito à integração das crianças e jovens ciganos no espaço escolar. Concorda?

Sem dúvida, quando a escola é frequentada por um grande número de crianças ciganas existe a preocupação da sua integração e torna-se mais fácil construir e desenvolver um projecto com a participação dos vários ?actores? do sistema educativo. Nestas escolas há uma mudança no processo de ensino-aprendizagem, recorrendo à pesquisa, à interacção e aderindo a práticas multiculturais.
Nas escolas onde o número  de crianças é reduzido concordo com Mirna Montenegro, uma vez que aderir a actividades educativas que vão ao encontro dos conhecimentos de que elas são portadoras e valorizar as vivências e saberes destas crianças dependerá da formação e da disponibilidade do professor. Mas o maior problema é que os professores são colocados nas escolas frequentadas por crianças de etnia cigana sem que lhes seja dada formação na área da educação multicultural, e é aqui que é preciso apostar.

Partindo da sua experiência, de que forma encara a comunidade cigana a escola? Valoriza a escolarização ou vê nela uma perda da sua identidade cultural?

Muitos pais ainda consideram que a escola é importante só porque é uma possibilidade das crianças ciganas adquirirem a leitura e a escrita. O povo cigano nunca sentiu necessidade de ir à escola para desenvolver as suas actividades.
Eles ainda vêem a escola como um instrumento ao serviço de uma política de assimilação. Na sua perspectiva, a frequência da escola pelas crianças, pode levar à perda da identidade cultural do povo cigano. Eles receiam que as crianças contactem com a cultura dominante, possam assimilá-la e modificar o seu comportamento. Esta preocupação aumenta em relação às meninas porque os pais têm medo que as meninas com 12, 13 anos, quando lhes vem a menstruação, contactem com rapazes não ciganos.
Mas, apesar de tudo, a visão da escola está a mudar e muito se deve às dificuldades que eles sentem nas feiras, com a abertura de lojas e hipermercados com preços baixos e a projectos desenvolvidos por diversas escolas onde se pratica uma educação multicultural.
Leva muito tempo para que a comunidade cigana confie na escola e no seu corpo docente. Fico triste e preocupada ao verificar que estão a ser destruídos anos de trabalho ao não permitirem que os projectos continuem com os professores que conseguiram a confiança dos pais e da comunidade.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Filomena Moreno
Mestre em relações Interculturais pela Univ. Aberta e Professora do Ensino Básico
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Filomena Moreno
Mestre em relações Interculturais pela Univ. Aberta e Professora do Ensino Básico
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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