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A materialidade dos afectos

Para os nossos discentes de Etnopsicologia da Infância.

As crianças observam-nos. As crianças sabem de nós. As crianças descortinam-nos. Esses pequenos seres entre os 12 meses e os cinco anos, imitam-nos. Procuram em nós uma satisfação sentimental das suas emoções e colmatar os seus desejos de uma resposta simpática no difícil processo de amar. Um processo que requer um parceiro, esse processo de ida e volta, conjugado no verbo amar: de simpatia, de antipatia, com raiva, ou, simplesmente, não amar. Em síntese, uma complexidade entre as relações baseadas nas emoções, nos sentimentos e na intimidade do desejo.
É esse descortinar dos nossos afectos que permite aos mais novos aprender a ser adultos, com bem ou mal-estar na cultura, como referia o nosso mestre Freud no seu texto de 1930, ao desenhar aberrações sexuais do seu tempo. Os mais novos escrutinam o nosso agir, decidem se é bom ou mau para eles e não vão a votos, é um observar sem democracia. Ditadura dos mais novos que obriga os mais velhos, a um comportamento adequado aos seus sentimentos definidos pela epistemologia cultural, que os mais novos desconhecem. È uma procura de empatia simpática, a mais primária das emoções, referidas no meu livro de 2000 ? «O saber sexual da infância» e no anterior de 1998, «Como era quando não era o que sou ou O Crescimento das Crianças,» os quais remeto ao leitor, por falta de espaço.
Ditadura, essa, referida ao adulto como uma entidade que ensina, predica, pratica sentimentos agradáveis e é observada com toda a atenção. Observação, capacidade baseada na existência de uma expressão material dentro da qual os sentimentos adquirem uma materialidade que possibilita o descortinar de sentimentos. Materialidade emotiva, como e porquê? A primeira ideia que me ocorre, é a da relação adulto e criança, esse carinho imenso que leva ao contacto físico, no dormir juntos, esse sadio relacionamento de beijos, abraços, apertos que, eventualmente, poderia levar ao prazer do orgasmo ao mais novo na sua natural procura de afecto. Ou do mais velho, facto delituoso definido pela lei como pedofilia.
Esta materialidade também acontece em outras sociedades, tal como a referida pelo Antropólogo Maurice Godelier entre os Baruya da Nove Guiné, no seu texto de 1981. Baruya ou etnia que pensa de forma analógica que a reprodução é possível quando acontece nos factos: tem-se sémen se é transferido entre jovens portadores e dado a beber ao pré ? púbere, materialmente incutido para a continuação social da vida na História. O jovem Baruya mais velho, deve casar com a irmã do iniciado, mulher que passa a ser a mãe dos seus filhos. Esses beijos e abraços entre irmãos de qualquer idade, são denominados na nossa lei europeia delito de incesto, caso acabe, como tenho observado no meu trabalho de campo, em prazer erótico. Prazer que em outras sociedades, não é delito. Refere Bronislaw Malinowski, o fundador da Antropologia Social Britânica, no seu texto de 1928, que entre os grupos sociais da Melanésia, não há incesto se acontecer relações eróticas entre parentes de clãs diferentes: os filhos o são apenas da mãe, e o homem, parceiro da mulher, necessariamente de outro clã. Não existe pai. Porém, não incesto. Para nós, o incesto é punido porque é corrente o seu acontecimento no processo da prolongada permanência sob o mesmo tecto de pessoas de família consanguínea. Ocorre-me também pensar em outra materialidade de afectos descortinados pelas crianças, como a masturbação ou formas de auto erotismo, retiradas de qualquer espécie de código falado em família, notícias comentadas, da catequese e a confissão. Conversas que levam a perguntar se a criança tem ?acarinhado as partes proibidas do corpo?, ou definições de catecismos anteriores ao actual, sobre debilidade mental consequência do auto erotismo. Costume social que intima a fazer parte do fair-play ou divertimento erótico entre adultos que a criança pode não ver, mas sabe que a porta do quarto, sempre aberta, ocasionalmente se fecha e fica proibido de entrar. Relação sexual íntima que passa a ser social devido aos adultos falarem, sem explicar, em conversas de mesa. Diferente das formas referidas por Freud em 1918 entre os nativos australianos, ou por Georges Devereux ao falar dos nativos da Europa em 1932 ao compara-los com os Mohave dos EUA em 1961. Ritos organizados por adultos do mesmo sexo, como transferência dos mais novos para uma nova hierarquia social. Baseada, necessariamente, na sexualidade. Conversa ausente da vida familiar europeia. Ou, como Malinowski diz no texto invocado, ao perguntar aos ilhéus do Arquipélago Kiriwina se acontecia fellatio, amor entre o mesmo sexo, relações físicas entre adultos e crianças, os habitantes riram por causa do autor não saber do jogo sexual entre parceiros de diferentes clãs, no primeiro caso, o do carinho procurado entre amigos, no segundo caso, e a iniciação ritual para a vida adulta, no terceiro. Comportamento da prática material de sentimentos que entre todos nós existe e que têm lançado vários Códigos orientadores da conduta sexual, individual e em grupo, como os Dez Mandamentos o Lei Hebraica, as XII Tábuas da Lei Romana, do Código de Justiniano que legislou Europa entre 536 e 1453 até causarem guerras entre Estados por causa de se avassalar ou não, ao Vaticano. Disputas que levaram ao Direito Canónico a governar Europa, até a separação do Continente entre várias alternativas cristãs para o entendimento do real. Direito, berço da lei civil napoleónica que hoje orienta as nossa vidas. É possível apreciar que o elo de toda legislação vigente, no controlo da sexualidade. O processo da sua materialidade não tem pensamento, a paixão carece da racionalidade que a teoria económica desenvolveu recentemente. Ou porque essa racionalidade não prevalece no campo da paixão.
A ditadura dos mais novos é necessária para que adultos de emotividade mal desenvolvida, ajustem os seus sentimentos à ética cultural. A geração que substitua procure esse único valor possível: amor oferecido, amor correspondido. Comportamento amadurecido capaz de entender as inúmeras mudanças da expressão material da afectividade na cronologia da vida. A ditadura dos mais novos é o grito de batalha que procura verdade, amor, definições do que não vê e não compreende. A adolescência, essa etapa difícil da vida, procura respostas empáticas e não apenas: ?isso não é contigo?, ou análises de pais em desesperada procura de Françoise Dolto, Alice Miller e Daniel Sampaio. Derradeira lição que recebe um ser humano ao passar da juventude à paternidade. Paternidade que devia conspirar com a infância e escrever o livro da vida que tem por título a materialidade dos afectos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Ana Paula Vieira da Silva

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