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Os professores como tutores

Os ministros David Justino e Bagão Félix apresentaram, numa conferência de imprensa conjunta, o plano através do qual visam prevenir e erradicar o abandono escolar. Do conjunto diverso de medidas que vieram a público anunciar, salientam-se aquelas que dizem respeito à criação da figura do professor-tutor, figura institucional cuja função seria a de acompanhar os percursos de todos os alunos que se encontrem em situação de risco escolar.
A proposta é generosa e necessária. De acordo com o discurso do Ministro da Educação há duas razões que permitem sustentar a exequibilidade da mesma. Uma tem a ver com o facto de já haver professores que assumem um papel idêntico face a alunos a viver em situações próximas do abandono escolar. A outra diz respeito ao facto de, segundo o ministro David Justino, os professores possuírem imenso tempo livre no âmbito do seu horário de 35 horas semanais, do qual só uma parte é utilizada para desenvolverem actividades lectivas. Como operação de «marketing» político, o governo PSD/PP mostra, mais uma vez, como é que as coisas devem ser publicitadas, mesmo que depois tudo acabe por ficar como dantes. Foi o caso, tão badalado, da ocupação dos tempos livres dos alunos nos períodos de interrupção das actividades lectivas, um dos últimos projectos que o Ministério da Educação acalentou sem grande sucesso e sem condições de, nas actuais circunstâncias, poder vir a ter pernas para andar. Quem não o sabia? O objectivo, no entanto, não era tanto o de implementar esse projecto, mas o de publicitar o mesmo, onerando os professores, as escolas e, eventualmente, as Associações de Pais pelo seu eventual insucesso. Agora chegou a vez dos professores-
-tutores.
Sem pretendermos realizar qualquer juízo prévio de intenções, sempre diríamos que o raciocínio que o Dr. David Justino explana não deixa de ser falacioso, sobretudo quando parte do princípio que o facto de haver professores que assumem, hoje, um papel próximo daquele que é de esperar que os tutores venham a assumir, é garantia, só por si suficiente, de que todos os docentes deste país o possam fazer. Se uma avaliação, mesmo que superficial, do desempenho dos directores de turma das nossas escolas não permite que partilhemos o optimismo do ministro, há um outro conjunto de razões que demonstram como o voluntarismo em educação nunca produziu, afinal, grandes resultados.
O projecto dos tutores, como instrumento para prevenir e erradicar o abandono escolar, só terá pernas para andar se não ficar preso do economicismo que leva o governo a usar os professores como mão-de-obra não qualificada para o exercício de funções num domínio eminentemente social. Se há docentes que são capazes de mostrar trabalho sério neste âmbito, importa afirmar que o fizeram no âmbito de intervenções que estão longe de poder ser entendidas como aquelas para as quais se encontram capacitados em função da formação inicial que realizaram. É, por isso, que o papel de tutor, a criar, deverá ser assumido preferencialmente por profissionais com outras qualificações, tais como psicólogos, assistentes sociais ou, entre outros, todos aqueles que tenham obtido uma licenciatura em Ciências da Educação. Gente disponível para estabelecer pontes com as famílias, a comunidade e as instituições, de forma persistente e capaz. Gente capaz de assessorar os professores e de se envolver na conceptualização, implementação e monitorização de programas específicos que envolvam as escolas e os contextos com os quais as primeiras possam estabelecer parcerias. Gente com condições para assumir responsabilidades inequívocas perante os órgãos de gestão das escolas, na medida em que o seu envolvimento profissional como tutores desses alunos será a sua tarefa profissional prioritária. Não se visa, assim, marginalizar os professores de todo este processo, mas tão somente destinar-lhes o papel que por direito lhes pertence: o de responsáveis primeiros e inquestionáveis pela gestão do processo de ensino-
-aprendizagem, no âmbito do qual têm trabalho que chegue para realizarem, investindo na elaboração dos projectos curriculares de escola e de turma, desenvolvendo e utilizando dispositivos de diferenciação pedagógica através da proposta de materiais e actividades adequadas aos seus alunos, no âmbito de ambientes pedagógicos de carácter o mais inclusivo possível, os quais estimulem, por sua vez, o desenvolvimento de estratégias de avaliação que tenham em conta esses mesmos ambientes.
Não queremos pôr em causa as intenções generosas do ministro, mas também não somos suficientemente ingénuos para não ter em conta o que se passa neste país com a governação PSD/PP. Se um número significativo de agrupamentos ainda não possui Serviços de Psicologia e Orientação, se mesmo aqueles que os possuem estão longe de ter condições mínimas para responder às inúmeras solicitações a que estão sujeitos, se, finalmente, tais serviços continuam confinados, apenas, à figura dos psicólogos educacionais, encontrando-se por aprovar, desde há mais de dez anos a esta parte, as figuras de técnico do serviço social e a de técnicos de educação especializados, vinculados ao Ministério da Educação, pergunta-se se alguém acredita que será este governo a responder a tais solicitações e necessidades. E, no entanto, para muitas das nossas escolas, principalmente para aquelas que se situam no universo do Ensino Básico, uma tal decisão é tão necessária como o pão o é para a boca. É que, quer nós queiramos quer não, as escolas assumem, para além das funções educativas que lhes são inerentes, um conjunto de funções sociais que não poderão ser dissociadas das primeiras. Funções para as quais, a maior parte das vezes, as escolas não se encontram preparadas, enfrentando problemas que ou vão resolvendo através do voluntarismo dos seus professores ou vão aguentando, estoicamente, o melhor que podem e sabem. Em larga medida, o problema do abandono escolar deverá ser compreendido em função desta dinâmica de carácter sócio-educativo que é parte integrante dos quotidianos das nossas escolas. Daí que a resposta ao abandono escolar não passe nem por medidas de carácter casuístico nem pela utilização dos professores como mão-de-obra barata e desqualificada que nenhum tipo de acções de formação pensadas e realizadas à pressa jamais poderá reabilitar. Prevenir e erradicar o abandono escolar talvez seja possível, mas só se se implementarem intervenções de carácter estruturante que o ministro David Justino, mesmo que quisesse, não patrocinaria por força das orientações estratégicas do governo de que faz parte.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 135
Ano 13, Junho 2004

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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