Página  >  Edições  >  N.º 134  >  Os Trânsitos de Vénus

Os Trânsitos de Vénus

À CONVERSA COM LUÍS TIRAPICOS

Define-se como um divulgador da ciência. Acredita no ensino informal e encara a utilização da experiência como o meio de excelência para transmitir conhecimentos nas áreas das ciências. Luís Tirapicos, astrónomo, é um dos autores  - juntamente com Nuno Crato e Fernando Reis - do livro ?Trânsitos de Vénus ? À Procura da Escala Exacta do Sistema Solar?. A PÁGINA encontrou-o no Visionário, em Santa Maria da Feira. Falamos do fenómeno que dá nome à obra: a lenta passagem de Venús pela face do Sol. Um acontecimento que será observável em Portugal no dia 8 de Junho.

O que é um trânsito e porque é tão raro?
Um trânsito é a passagem de um astro, aparentemente mais pequeno, em frente a outro maior. Distingue-se do eclipse porque neste um dos astros fica ocultado. Mercúrio e Vénus têm órbitas interiores à da Terra e passam frequentemente entre ela e o Sol. No entanto, os trânsitos são raros: os de Mercúrio acontecem, em média, treze vezes por século, os de Vénus não chegam a ocorrer dois por século. Isto porque as órbitas destes planetas estão inclinadas em relação à da Terra. Além disso, entra em jogo o período de revolução de cada planeta em torno do Sol que determina o alinhamento entre estes três astros: Terra, Vénus [ou Mercúrio] e o Sol. Ora o alinhamento grosseiro entre a Terra, Vénus e o Sol ocorre de dois em dois anos, mas para haver um trânsito o alinhamento tem de ser quase perfeito. Ou seja: temos dois planos ? das órbitas da Terra e de Vénus ? que se interceptam criando uma linha de intersecção [a Linha dos Nodos] e só quando os planetas se alinham junto dessa linha é que há um trânsito. Caso contrário, como as órbitas estão inclinadas uma em relação à outra, Vénus, por exemplo, pode estar a passar um bocado acima ou abaixo do Sol.
 
Que descobertas astronómicas resultaram da observação do Trânsito de Vénus ao longo dos tempos?
Várias. Nos finais do século XVIII as distâncias relativas entre os planetas já eram conhecidas pelas Leis de Kepler, mas não havia uma noção da distância absoluta. Era como ter um mapa com a posição das cidades, em relação umas às outras, sem ter a distância que as separa em quilómetros. Havia uma grande necessidade de se encontrar uma medida do sistema solar. E isso fez-se através da medição da distância da Terra ao Sol à qual chamamos unidade astronómica. Foi Edmond Halley, o astrónomo inglês cujo nome foi dado ao famoso cometa, que num artigo deu a conhecer o modo como se poderia calcular essa distância utilizando um trânsito de Vénus. Ele sabia que já não iria observar o trânsito de 1761 e lançou um apelo para que os astrónomos o observassem. Para fazer este cálculo interessava usar a paralaxe  que consiste em ver algo contra um objecto mais distante de dois ângulos diferentes. Uma experiência do que isso é pode ser feita estendendo um dedo e fechando alternadamente os olhos, verificamos que o dedo se ?move? em relação aos objectos mais distantes.
Outra das descobertas aconteceu mesmo durante o trânsito de 1761. Lonomo Sof, astrónomo russo, ao observar o momento em que Venús estava a sair do disco do Sol detectou uma auréola brilhante em torno do planeta e deduziu que este teria uma atmosfera.

Encontrada essa medida astronómica que repercussões teve?
Para além de se saber as distâncias do sistema solar começou-se a medir a distância às estrelas mais próximas da Terra, através da medição da paralaxe. Como? Imagine-se a Terra numa determinada posição da sua órbita em torno do Sol, seis meses depois, ela estará numa outra posição diametralmente oposta. Utilizando duas observações da mesma estrela com seis meses de intervalo podemos medir o ângulo da variação de posição destas estrela contra as estrelas mais distantes. Não sabendo a distância da Terra ao Sol [ou a dimensão da órbita da Terra] não se poderia medir as distâncias às estrelas. E um pequeno erro no cálculo da dimensão da órbita da Terra vai originar um grande erro na medição das estrelas mais distantes. Ora como a astronomia foi durante muito tempo essencialmente a medição de posições estas questões foram problemas essenciais.  

Actualmente qual a importância da observação deste fenómeno?
O interesse actual tem a ver com observarmos no nosso sistema um fenómeno que está a ser utilizado para detectar planetas extra-solares. O Steven Dick, historiador da NASA que escreve o prefácio do livro, diz, e muito bem, que há vários processos de detectar planetas fora do sistema solar, mas que nunca fotografamos e nunca vimos nenhum. Através das leis da mecânica consegue-se com grande segurança saber que os planetas extra-solares estão lá e qual a sua massa, mas nunca se observou directamente nenhum. A observação é feita usando métodos indirectos. Recorde-se que as ilustrações que aparecem na imprensa são desenhos, pinturas. Um dos métodos indirectos consite em medir o brilho da estrela à volta da qual os planetas giram e ver se há uma variação. Há estrelas que têm um decréscimo do seu brilho na ordem dos 1, 2% e quando isto acontece quer dizer que está um planeta a passar em frente à estrela. Há também um projecto da NASA que prevê o lançamento de um satélite, o Kleper, que irá observar 100 mil estrelas semelhantes ao Sol usando este efeito.

De que forma este fenómeno pode ser aproveitado em termos educativos?
Os trânsitos são raros, não há ninguém vivo que tenha observado o último (risos). O fenómeno pode Tem o interesse de podermos repetir na prática algo que foi feito historicamente. A mim ainda me faz hoje uma grande confusão ver como é que se pode ensinar, por exemplo, Física ou Química sem fazer experiências. Falo com muitos docentes que me transmitem essa ideia, de que, por exemplo, 90% dos professores não fazem experiências, apesar de ter havido, e ainda existir, um programa denominado Ciência Viva que equipou as escolas para esse efeito.

A experiência é  a melhor forma de cativar os alunos para estas áreas?
Para mim é a única forma de se poder ensinar Física ou Química. É óbvio que pode haver um ensino mais livresco mas parece-me que não é suficiente, a ser pode dar uma imagem muito distorcida dessas ciências. A verdade é que muitas leis e princípios são empíricos, resultaram da experiência, então, como é que as pessoas podem perceber como os fenómenos aparecem sem fazer experiências? Se não vêem na prática as coisas a funcionar?

A ?posição? do investigador

Falando de Ciência há uma questão incontornável ? como vê o anúncio do novo modelo de financiamento para a investigação científica destinado, segundo o Ministério da Ciência e do Ensino Superior, a evitar a fuga de talentos nesta área?
Vejo isso com alguma preocupação. Houve um grande investimento na formação avançada de recursos humanos mas vejo muitos colegas, que eram excelentes alunos e estiveram nos melhores grupos de investigação, com imensa dificuldade em arranjar emprego no nosso país. E há um número, que não é nada desprezável, de pessoas que se especializaram em astronomia mas estão a trabalhar em áreas marginais?
Seria bom que em Portugal se criasse algo que já existe no estrangeiro: a ?posição? do investigador. O que acontece aqui é que as pessoas arranjam emprego como professores universitários e só nas horas vagas, ou em segundo plano, é que fazem investigação. Por isso, valia a pena fazer esse esforço para dar algumas ?posições? para que as pessoas se pudessem dedicar quase exclusivamente à investigação.

?Os astrónomos não acreditam na astrologia?

A observação dos astros sempre esteve envolta num certo misticismo. Como se explica que existam programas e páginas de jornais dedicados semanalmente à astrologia e no entanto a astronomia, uma ciência, continue a ser pouco mediatizada?
(Respira fundo?) Talvez a astrologia mexa mais directamente com a vida das pessoas? Mas na astronomia estudamos vários fenómenos que põem em causa a astrologia. Primeiro: as estrelas têm movimento próprio, ou seja, as constelações como as vemos hoje, daqui a uns milhares de anos estarão completamente distorcidas. Segundo: há um movimento da Terra que se chama movimento de percepção que faz com que hoje as constelações, que na antiguidade foram usadas pelos astrólogos para estabelecer os signos, já não estejam bem na posição em que estavam quando esses signos foram estabelecidos. Por exemplo, o Sol hoje já não se encontra nos signos em que se encontrava quando estes foram fixados. Depois há certas questões que podem ser colocadas à astrologia. Por que é que os astrólogos não usam os asteróides nos seus cálculos, eles também fazem parte do sistema solar? E antes da descoberta de Plutão, que data de 1930, as previsões estavam incompletas ou erradas?

Podemos concluir que se a astronomia fosse mais divulgada a astrologia deixava de fazer sentido?
Durante um largo período da história, a astrologia andou a par da astronomia. Não havia distinção entre elas. Tal como aconteceu com a alquimia e a química. Só quando a Ciência Moderna apareceu é que estes pares se conseguiram libertar. O Newton ainda fez horóscopos, o Kepler era astrólogo e até dizia que Deus tinha dado a todos os animais um meio de subsistência e que aos astrónomos tinha dado a astrologia. Para ele era um meio de subsistência. Mas, em geral , os astrónomos não acreditam na astrologia porque ela foi montada numa altura em que a Terra estava no centro do universo e já há muito tempo que ela deixou de estar (gargalhadas). Mas se a astrologia for vista no plano da religião não há nada a dizer. As pessoas acreditam naquilo que querem?

Entrevista conduzida por Andreia Lobo


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Luís Tirapicos

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Luís Tirapicos

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo