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O pão que o diabo amassou

Sofia não sabe quantas mais voltas há-de dar à vida para ganhar mais de 300 euros por mês. Pedro queria ser ?funcionário público?, mas falta-lhe o inglês para completar o 12º ano. José Carlos ganha apenas o necessário para pagar a prestação do apartamento e sustentar a família. Goretti prepara-se para encerrar a pequena papelaria que abriu há 16 anos. Carla tem o emprego por um fio. Emília assiste impotente à quebra das vendas da empresa onde trabalha. No mês de Maio, a Página mostra com que sujeitos concorda o verbo trabalhar.

1. Agarrar o que se tem

Ganha ?mais ou menos? 300 euros por mês. Mas para os conseguir, Sofia Pereira, 23 anos, desdobra-se em trabalhos. De nadadora-salvadora, durante a semana passa 15 horas a vigiar uma piscina e duas horas a dar assistência num ginásio, ambos municipais. De empregada de bar, às sextas e sábados das 22h às 5h30 serve bebidas num dos muitos bares da Ribeira portuense. De guia turística, fazendo passeios de sidecar sempre que requisitada.
Ao fazer contas à vida, Sofia já descobriu que as parcas horas que faz aqui e ali ?quase não compensam? o esforço a que se submete. Sobretudo nos dias em que apenas tem uma hora de trabalho no ginásio. O que ganha nesses 60 minutos não chega a pagar a gasolina que gasta na deslocação. ?Mas eu vou na mesma!?, precipita-se. A razão é básica: receio de que uma eventual recusa ponha em causa as restantes horas de trabalho como nadadora- salvadora.
?Há muita gente a querer o meu lugar?, vaticina. É o caso dos licenciados em Desporto. Uma vez encerradas as portas do ensino da Educação Física, estes licenciados acabam à procura de emprego em piscinas e ginásios. Fazendo concorrência aos que, como Sofia, trocaram o ensino superior por cursos especializados em determinadas práticas desportivas. No seu caso, o curso de nadadora, da Federação de Natação do Norte e de monitora de hidroginástica. Entre uns e outros candidatos, o desempate é quase sempre feito a favor dos licenciados, garante a nadadora-salvadora.
Ainda assim a hipótese de se inscrever numa faculdade para ?ter um canudo na mão?, está fora de questão para Sofia. ?Não vejo as pessoas que saem desses cursos a terem empregos melhores do que o meu!? E, apesar de gostar imenso do seu trabalho de nadadora-salvadora, Sofia confessa estar a pensar ?mudar de rumo?. No prato da balança está a pesar o facto de estar a recibos-verdes e de poder ser dispensada a qualquer momento. ?Gostava de investir no projecto dos passeios turísticos de sidecar, mas para isso preciso primeiro de um emprego que me dê mais dinheiro!?, diz. 

2. Procurar sempre melhor
O anúncio de emprego pedia um rapaz com o 9º ano, dinâmico e com boa apresentação para trabalhar numa loja grossista de produtos alimentares. Só no primeiro dia de entrevistas apareceram cerca de 20 candidatos para os dois lugares existentes. Pedro Costa, 25 anos, foi um dos escolhidos.
Trabalha das 7h às 14h, durante a semana e ao sábado das 7h às 12h. Ganha perto de 355 euros. Sente-se mal remunerado e não gosta do que faz. Uma situação que no seu entender tem tanto de deprimente como de irremediável. ?Estou a trabalhar há um ano e meio e nunca parei de procurar algo melhor, mas está cada vez mais difícil para arranjar emprego?, confessa.
A juntar às dificuldades o facto de haver, segundo Pedro, muita gente com as suas habilitações. Ou a falta delas: ?Se tivesse mais formação?? Obtê-la é algo que faz parte dos planos de Pedro: ?Quero acabar o 12º ano!? Mas o rumo que há-de dar à sua vida depois disso não é claro. A alternativa que a Pedro se afigura mais evidente é o ingresso num curso profissional. As áreas: a gestão, a informática ou o controlo de qualidade. ?O meu sonho era ser funcionário público?, graceja. Enquanto isso não acontece, Pedro vai cumprindo o contrato que é renovável de ano a ano, até três anos. Em 2005 logo se verá se efectiva ou vem para a rua.

3. Forçar o duplo emprego
É chefe de secretaria de uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) há 34 anos e vigilante de um edifício há 20.
Houve tempos em que a vida de José Carlos, 50 anos, se desenhava num círculo. Saía da IPSS às 17h, entrava no segundo emprego uma hora depois, saía às 24h e voltava a entrar na IPSS às 9h30. Mas ?a idade foi passando? e José Carlos foi reduzindo as horas de trabalho na IPSS. Com três horas oficiais e mais algumas de boa vontade o trabalho de contabilidade e facturação que lhe cabe na IPSS fica feito.
Casado, com três filhos em idade escolar e nove horas de trabalho diário, o rendimento mensal de José Carlos ?não dá grandes extravagâncias?. ?Chega para pagar a prestação do apartamento, mas já não dá para ter um automóvel?, explica. Poderia ser diferente? José Carlos responde que sim.
?Podia ser professor de Educação Visual, mas já na altura isso implicava trabalhar longe de casa e havia sempre o risco de ter colocação num ano e noutro já não?? Por isso optou por um emprego onde embora ganhasse menos tivesse mais estabilidade.
Hoje José Carlos gostava de não ter de se desdobrar em dois empregos. E estar mais tempo com os filhos, que basicamente só vê aos fins-de-semana. ?Quem não anseia por uma vida melhor??, questiona. ?Mas se aos 35 já se é velho para trabalhar, aos 50 é impossível arranjar outro trabalho.?

4. Apostar num pequeno negócio
Trabalhou 15 anos num bazar de brinquedos até que este abriu falência. Depois Goretti Ferreira, 46 anos, decidiu que era chegada a hora de concretizar um sonho: abrir um estabelecimento por conta própria.
Tinha 31 anos quando fez do rés-do-chão da sua casa uma papelaria juntando o útil ao agradável. ?Foi uma maneira que encontrei de tomar conta das minhas duas filhas, da minha sogra e do meu marido sem deixar de trabalhar?, explica Goretti. Dezasseis anos depois, a papelaria tem os dias contados.
Apesar de ficar a caminho de uma escola secundária são cada vez menos os clientes à procura de canetas, cadernos, réguas, colas, capas e mochilas. ?As grandes superfícies comerciais estão a acabar com o pequeno comércio?, constata Goretti. E ao invés de dar lucro há dois anos que a papelaria dá prejuízo. ?Só no contabilista, no imposto por conta, no IRC e no IVA, gasto cerca de 400 euros por mês?? Em Junho não terá mais preocupações. Fechará as portas da papelaria. Com tristeza. E muita revolta: ?O governo está a acabar com os pequenos comerciantes, mas está-se a esquecer de uma coisa fundamental: são esses que pagam os impostos!?

5. Aproveitar os fins-de-semana
Chegou a trabalhar 54 horas por semana num mercado de frutas para receber 310 euros por mês. Tinha 17 anos e acabava de abandonar a escola depois de somar alguns chumbos no 10º ano. Carla Dias, 21 anos, esteve empregada nesta situação durante mais um ano.
Hoje o cenário é diferente. É repositora num supermercado, trabalha 16 horas ao fim-de-semana e ganha 200 euros por mês. ?Tomara eu agora ter mais horas de trabalho?, confessa Carla. Em casa, a avó e o pai contam com o seu salário para completar o orçamento familiar.
?Não é o trabalho dos meus sonhos, mas habituei-me a ele!?, esclarece Carla. Por isso preocupa-a o facto do seu terceiro contrato terminar em Agosto, altura em que completará um ano de casa. Depois de ver várias colegas na mesma situação a não conseguirem renovar os seus contratos, Carla acredita que o seu destino será igual. ?Estou na lista negra!? O curioso, diz: ?É que não está em causa o meu modo de trabalhar e a gerência até tem boa impressão a meu respeito?? Mas ?as ordens vêem de cima?. E dizem que a ?política da empresa é assim?.
Apesar de tudo, Carla recusa-se a ficar de barcos cruzados. ?Se contratarem outra pessoa para o meu lugar, não podem dizer que me dispensam porque não precisam de gente e nesse caso eu posso me queixar, não é?? Resta esperar para ver o que acontece.
No futuro, Carla quer equacionar a hipótese de voltar à escola para acabar o 12º ano, ?à noite?. Talvez assim possa encontrar o emprego dos seus sonhos. ?Gostava de trabalhar com crianças ou com idosos ? sorri ? mas tenho medo de voltar à escola e fracassar.?

6. Resistir à comissão

Respondeu ao anúncio de emprego sem o marido saber pois este não queria que ela trabalhasse. Emília Pinto, 52 anos, é vendedora de livros técnicos. Há 22 anos que acumula ?canseiras? ao serviço da mesma empresa.
Ganhou sempre à comissão e ainda se lembra do espanto que causou ao marido quando trouxe para casa o seu primeiro ordenado: 300 euros. ?Era mais do que o que ele ganhava na época?, explica Emília.
Agora supõe que poderia estar mais realizada se pudesse auferir de um ordenado fixo. Até porque, garante, ?as vendas de livros técnicos estão em queda desde 1996?. As escolas, os seus principais clientes ?têm cada vez menos dinheiro para equipar as suas bibliotecas?. E quando há dez anos um vendedor podia facturar três mil contos por ano para a empresa hoje fica-se pelos mil. ?E já é muito bom!?, conclui. Mudar de emprego? ?Com a minha idade??, risos.



De marçano a merceeiro    

Fez a 4ª classe e foi trabalhar como marçano. Estava-se em 1948 e José Pereira tinha 10 anos. Deixara para trás a sua aldeia em Cabeceira de Bastos e rumara ao Porto. Durante dois anos trabalhou só pela comida e a dormida. Aos 12 anos foi trabalhar para outra mercearia e passou a ganhar 350 escudos. ?Foi uma grande promoção?, recorda Pereira.
Por essa altura todas as lojas comerciais de mercearia trabalhavam da mesma maneira. Os empregados entravam às 8h e saíam às 23h. Todos os dias. Sábados incluídos e Domingos das 9h às 14h com uma interrupção e nova retoma das 19h às 22h. Folgas? Apenas aquelas cinco horas da tarde do dia em que até Deus descansou.
Era assim a vida dos rapazes de ?origem humilde? que tal como Pereira vinham para a cidade. Até à idade da tropa, os jovens não podiam ambicionar empregos com mais regalias ou melhores remunerações. Os anúncios de emprego apregoavam: ?Aceitam-se trabalhadores com o serviço militar cumprido?.
E assim, Pereira foi marçano até à tropa. Chamado a cumprir o dever para com a pátria ficou espantado com a fortuna que lhe pagaram durante a recruta. Vinte e cinco tostões no primeiro mês. Três escudos no segundo. Outros vinte e cinco tostões no terceiro mês. E cinco escudos no quarto. ?Éramos militares mas não ganhávamos nada!?, afirma Pereira.
Terminada a tropa em 1971 Pereira não quis mais ser marçano. Tinha vinte anos e estava cheio de energia. Foi gerente de uma confeitaria? mas o emprego prendia-o de mais, obrigando-o a trabalhar sábados e domingos, o que fez com que ao fim de 14 dias de trabalho se viesse embora. «Era um tempo em que se dava um chuto numa pedra e logo surgia trabalho». Pereira empregou-se numa empresa gráfica.
E eis que surge a revolução de 25 de Abril de 1974. A maior parte das firmas entra em crise ou em auto-gestão, surgem problemas laborais e alguns dos donos dessas firmas fogem para o Brasil. Pereira é apanhado nesse turbilhão laboral.
A vontade de ter uma vida melhor e a habilidade para os trabalhos técnicos levam Pereira a aventurar-se por outros rumos profissionais. Junta a apetência ao gosto pela fotografia, aprende técnicas de laboratório e começa a trabalhar como fotógrafo.
Nos anos 80 monta, com mais duas pessoas, aquele que segundo Pereira foi ?o melhor estúdio de fotografia do Norte de Portugal?: o Foto Prisma. Trabalha com a televisão, para revistas e jornais, faz fotografia de moda. Tudo corria bem até que alguns problemas de relacionamento com os sócios o levaram a tomar a decisão de encerrar o estúdio. Pereira perde a grande oportunidade de trabalhar numa área que gostava.
O retorno ao comércio foi inevitável. Acontece em 1982. Não era o que gostava de fazer. Aliás, de tudo quanto fez em toda a sua vida Pereira acredita que trabalhar em mercearias é mesmo aquilo que menos gosta de fazer. Mas naquela altura essa era uma das actividades onde se ganhava melhor. ?E não tem nada que saber", afirma Pereira: ?É comprar o mais barato possível e vender o mais caro possível! Não é preciso ter imaginação nenhuma, todos os dias a mesma coisa!?
Assim fala Pereira do balcão da mercearia de que é proprietário e sem vergonha de dizer que não é nessa profissão que encontra a sua realização pessoal. Antes num passatempo, algo a que dedica realmente o seu tempo: o restauro de motas e carros antigos. ?Devia ter sido técnico??, afirma Pereira.


  
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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