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A verdadeira Havana

Camisa preta desapertada até ao abdómen. Calça bege de linho. Cabelo preto a dois pentes do rapado. Óculos de sol escuros a esconderem uns olhos azuis rasgados. O seu andar fazia um baloiçar, como se cada movimento do corpo se descontraísse ao ritmo da salsa.
Victor era o instrutor de condução mais desejado da escola. Sedutor. Conversa fácil. Lábios finos. Cultura geral aprendida nos jornais do dia. Expressão serena de quem sabe que arrebata mas finge não atingir. Olho de águia para maiores de 20. A sua fama passava de aluna em aluna.
Os colegas de trabalho puseram-lhe a alcunha de "Cubano". Não só pela sua aparência latino-americana. Victor passava o dia ao som dos clássicos: Célia Cruz, Compay Segundo. E os outros: Yuri Buenaventura, Pink Martini. O seu lema de vida podia ser ouvido na canção ?De Todo un Poco?. Daí que por todas estas razões, e por mais uma que só a ele dizia respeito, Victor identifica-se plenamente com a alcunha. Era uma vaidade ser chamado assim.
A personalidade do instrutor despertava também o interesse na ala masculina. Por motivos, até ao momento, bem diferentes dos da ala feminina. A áurea de ?engatatão? aguçava a curiosidade do ?saber como se faz? nos rapazes. Os que não escolhiam Victor para instrutor não imaginavam o quanto se podia aprender da vida em trinta lições de condução. A esses restava-lhes chumbar no exame, voltar à escola e pedir para mudar de instrutor. Os afortunados, que conseguiam ultrapassar a barreira da inveja, adoravam Victor como a um deus do engate. E ele não fazia por menos.
Primeira lição: antes de por o carro em andamento verificar os espelhos, ajustar o banco à medida para chegar aos pedais, pôr o cinto e dar sinal de pisca para sair do estacionamento, só então arrancar. Entenda-se: antes de sair de casa passar pelo espelho, ver se cabelo precisa de mais gel, dar um esguicho vaporizador de perfume, sem exageros, desapertar os dois primeiros botões da camisa e compor o olhar, o mais matador possível, só então bater a porta.
Ás vezes havia quem se queixasse do instrutor: ?Foi mal educado!?; ?Berrou comigo porque não parei num Stop!?? Fosse com outro empregado e o dono da escola tomaria uma atitude qualquer. Mas com Victor? O perfil da queixosa era sempre o mesmo: convencida, sem nenhum atributo em especial e ?amiga? de alguma aluna a quem o Victor convidara para um café, fora do horário de trabalho, obviamente. A absolvição era segura. Além disso, à custa de Victor a escola lucrava bastante. Se o instrutor causava boa impressão numa aluna, era certo que todas as suas amigas tirariam a carta de condução na escola. E quem diz as amigas, diz as mães.
Segunda lição: o semáforo amarelo é para parar, não é para avançar até porque o amarelo torrado não existe no código. Entenda-se: as mulheres são o que de melhor Deus, nosso Senhor criou, logo a seguir aos homens, mas algumas são do pior, há que respeitar as primeiras e evitar as outras.  
A vida de Victor era esta. Invejado, admirado, solteiro, tinha as mulheres que queria e um emprego garantido, pelo menos enquanto aparentasse 30 anos, apesar de estar já rondar os trinta e tal a caminho dos 40. E mais não haveria que contar. A não ser, talvez, que a sua ?segunda casa? era o clube Havana. Quem o quisesse ver a exibir os seus três anos de danças latino-americanas, ao sábado à noite, era lá. Mas, apesar dos pesares, o ânimo do Cubano nunca estivera tão em baixo. Nunca, até à altura em que começou esta história.
Victor não era homem de lamechices. Estava a atravessar uma ?crise existencial?, sem saber que isso existia. E ainda bem. No seu entender estava apenas a precisar de férias. Então deixou passar o Agosto, o mês em que havia mais inscrições na escola, deixou passar o Setembro, o mês em que os colegas gozaram as férias, e em meados de Novembro aproveitou uma promoção da agência de viagens e foi sozinho para Cuba. Voltou quase no Natal. Vinha queimado do sol. Obviamente, mais cubano do que o que fora. Trazia um sorriso menos composto e um plano de regresso ao país de Fidel Castro. Acertou as contas na escola de condução, para regozijo dos invejosos. Despediu-se das ?amigas? sem promessas de até breve. E agora está lá. Ao sol, na verdadeira Havana.


  
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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