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Como é que o guacho coloca o primeiro graveto?

Algures, em 13 de Setembro de 2007
Querida Alice,

Recordar-te-ás de que uma outra escola acolheu no seu seio duas gaivotas e pássaros aprendizes, que partiram da escola das aves levando na bagagem gestos e saberes adquiridos nas origens, mas também o desprendimento e a confiança necessários à construção de novos ninhos. Faltaria apenas entender os sinais e os perfumes de outros pássaros, sentir o pulsar de outros lugares, outras verdades. Pois, como disse o Pássaro Encantado (de que te falei numa outra carta), a verdade não é uma só, nem é só nossa, vivendo, sob múltiplas formas, em todas as pessoas e em todos os pássaros. 
Os primeiros tempos foram de prudente expectativa, mas também de disponibilidade. Em tudo o que se relacionasse com as aprendizagens que os jovens pássaros devessem fazer, seria de fazer também a pergunta fundadora: seriam os pássaros ensinantes (quer os recém-chegados, quer os residentes) capazes de assumir a construção em comum de um locus de aprendizagens que fizesse dos aprendizes pássaros sábios e felizes?
As gaivotas sabiam que tais aprendizagens não seriam viáveis em processos de transmissão como o dos vasos comunicantes, mas que se colariam às asas se o voo ensinado fosse colado à vida; todavia, estavam receptivas a diferentes saberes de diferentes pássaros. As gaivotas migrantes apercebiam-se das sombras projectadas de abutres voando em círculo e da proximidade de múltiplos perigos; porém, generosas até à morte, as gaivotas recém-chegadas acolhiam o jeito de asas das gaivotas hospitaleiras e buscavam a compreensão de um novo canto, sussurrando aos ouvidos das jovens aves a harmonia que se respira nos gestos de um guacho.
O guacho é um pássaro que constrói o seu ninho suspenso de um ramo. Perplexo face à mestria exigida pela construção desse ninho, o Pássaro Encantado interrogava-se: como é que o guacho coloca o primeiro graveto para construir o seu ninho?
O guacho não perdera a memória do tempo de um viver em comum (como um), a memória de um tempo sem resquícios de rivalidades que assegurassem a exclusiva posse de um território ou arrastassem pássaros para tentações de subjugação dos seres nele confinados. O guacho apenas vivia para construir ninhos. E sabia que, para instalar os frágeis alicerces da estrutura que serviria de berço à sua prole, para enlaçar o segundo dos gravetos no ramo pendente sobre o abismo, precisaria de dois bicos fraternos e solidários segurando o primeiro. Ao construir os seus ninhos suspensos sobre as águas, o guacho dava lições de arquitectura. Possuía os saberes dos construtores de pontes, sabia que toda a ponte tem dois sentidos e que as pontes estabelecem sempre uma transição entre o que é e o porvir...
O guacho detinha ainda a faculdade de fazer outras pontes, pois entendia e sabia reproduzir os cantos de outros pássaros. Como disse o Pássaro Encantado, quando se fala com amor, cada palavra que se diz é uma revelação daquele que fala. Daí que, na Babel em que frequentemente se transformava a sociedade dos pássaros, o guacho estabelecesse pontes de entendimento entre diferentes linguagens, abrisse janelas sobre a lucidez dos dias, levasse o alimento da palavra simples e pura até às raízes dialógicas, até que o que o que padecesse de aridez se transformasse em comunicação fértil.
É sempre bom relembrar exercícios de solidariedade porque, nesses conturbados tempos do princípio deste século, os gestos fraternos eram escassos. E também porque a solidão é, muitas vezes, o destino de pássaros a quem calha por sina o conhecimento e a bondade. Um pássaro chamado Tomás de Aquino escreveu que o dom da inteligência está associado ao dom das lágrimas. Porém, o sal do pranto vertido não corroeu o sagrado destino dessas gaivotas.
É sempre útil recordar que, quando as gaivotas desta história decidiram abalar dos rochedos junto ao mar, indo à aventura terra adentro, até desaguarem do seu longo peregrinar numa terra entre dois rios, nada conseguiriam se as gaivotas de outras margens se recusassem a partilhar a construção e a coabitação de ninhos onde jovens aprendizes de voar aprendessem o voar mais longe. E que foi na observação atenta do guacho edificando ninhos que as gaivotas se iniciaram numa sabedoria que não se adquire na contemplação de reflexos num espelho.
Quando a Primavera aporta os rituais de sedução e a azáfama do acasalamento nas copas das árvores, mercê de insondáveis e latentes desígnios, sucedem-se as cópulas que asseguram a perenidade das espécies, sem que o instinto se sobreponha ao cotio da liberdade. Porém, muitas aves ignoram a finalidade dos seus actos ? o que não é o caso do guacho. Poder-se-á chamar instintivo ao acto paciente e fraterno de juntar um galho a outro galho, até se completar um ninho. Eu diria ser mais um acto religioso. Que mania a dos humanos seres a de considerar não ser da natureza dos pássaros o re-ligare! Que estranha presunção a dos humanos seres a de considerar que os pássaros sejam desprovidos de alma e que a construção do ninho de um guacho não seja um acto de intensa comunicação de alma para alma entre pássaros construtores.


  
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Edição:

N.º 134
Ano 13, Maio 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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