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Voar em vê

Algures, em 11 de Setembro de 2007,

Querida Alice,

Neste mesmo dia de há seis anos, pássaros metálicos derrubaram torres altaneiras e semearam a morte nas terras do norte. Na mesma terra de onde partiram, num outro 11 de Setembro, mensageiros da morte que semearam sofrimento no sopé dos Andes, nas terras do sul. É verdade, querida Alice. Nos dias que sucederam ao teu nascimento, o reino dos pássaros vivia ensombrado pela compreensão de uma evidência: as sociedades que dispunham das melhores escolas eram as mesmas sociedades que produziam exércitos ocupantes e seres egoístas que, em nome do seu conforto, envenenavam os céus de todos os pássaros com gases letais. Nesse tempo, também através da escola se perpetuavam insanos ciclos de violência e morte.
Muito antes, no primeiro ano do vigésimo século da era dos homens (no tempo de um discreto anunciar da era dos pássaros), uma andorinha enunciou uma premonição jamais consumada. Essa andorinha acreditava que o vigésimo século do tempo dos homens seria chamado ?o século da criança?. Acreditava que a escola faria dos pássaros e dos homens seres mais sábios e mais felizes. Porém, durante todo esse século, a Escola apenas reproduziria velhos rituais sem sentido. A escola dos homens não produzia humanidade. Produzia bonsais humanos. E, no princípio do século em que nasceste, a escola já nem sequer ensinava (como pode uma escola ensinar, se nunca acariciou ninguém?).
Mas foi também por essa altura que uma outra gaivota (de nome Jean) explicou o que a ciência dos homens havia aprendido com as suas companheiras vindas das terras do sul. Sendo as gaivotas da nossa história pássaros ?aprendizes até ao último bater do coração? ficaram presas à descrição da maravilhosa criatura. E a andorinha Jean contou às gaivotas segredos que ajudaram a melhorar a escola das aves.
Quando a proximidade do Verão impelia as andorinhas a partir, elas voavam sempre em bando, desenhando no céu a forma de um vê. Quando uma andorinha batia asas, produzia uma corrente de ar ascendente que ajudava a progressão das companheiras que voavam atrás de si. Se, por efeito de um golpe de vento ou tentação de lonjura, alguma andorinha se afastava do bando, logo regressava ao seu amplexo protector. E, quando a fadiga assaltava a andorinha que ocupava o vértice da cunha voadora, logo outra andorinha corria a ocupar o seu lugar. Poder-se-ia pensar que a andorinha que voava à frente de todas as outras cortava o vento sem ajuda de ninguém? Puro engano: se perante os seus olhos se estendia o sem fim do espaço, atrás de si, todo um bando a impelia para a frente e lhe conferia a escolha do rumo. Aliás, enquanto durou, a ciência dos homens apurou que as andorinhas que voavam no aconchego do bando emitiam sons que animavam as que, por contingência, ocupassem os lugares da frente.
Estas e muitas mais lições aprenderam as gaivotas ? sempre prontas a aprender com outras aves ?, mas a maior das lições foi dada por uma andorinha que, apercebendo-se do drama vivido pela escola das aves, por ali se deixou ficar, enquanto durou o cerco imposto pelos abutres, negrelas e papagaios. É certo e sabido que nenhuma andorinha, em seu perfeito juízo, se deixaria ficar, trocando o certo pelo incerto, arriscando a vida. Mas esta aceitara plantar ninhos noutros beirais. Como sempre acontecia perante a simplicidade e beleza dos pássaros ? que me traziam à memória a simplicidade e a beleza esquecidas por muitos homens ? quedei-me num silêncio comovido perante o gesto da andorinha resiliente.
Pressinto, querida Alice, que te questionarás: como pode essa andorinha arriscar expor-se aos rigores da invernia e ao peso das saudades do futuro? Sabemos que uma andorinha é criatura de hábitos gregários, que não sobrevive à solidão e que, quando aprisionada, resiste secretamente em silêncios que falam de voos por dentro. Mas esta manifestava uma alegria de existir maior que a saudade que sentia de África. É que a andorinha não estava sozinha, mas amparada. Eu explico?
No decurso das viagens, sempre que uma andorinha adoecia ou ficava ferida, logo as duas mais próximas abandonavam o bando, para a acompanhar e proteger, somente regressando ao aconchego de um outro bando em migração, quando a andorinha que protegiam recuperasse a capacidade de voar, ou morresse. E eu bem vi, ao longo de um longo Inverno, um ninho de lama a abarrotar do calor de três pares de asas negras. Assim, as gaivotas receberam destas andorinhas que sonhavam o regresso da Primavera mais uma prova de que a solidariedade não era uma palavra vã.
Nesse distante mês de Outubro dos primeiros anos deste século, os primeiros frios de Outono foram temperados com a chegada de pássaros de todas as cores e origens, que, seguindo o exemplo das andorinhas solidárias, acorriam em auxílio da escola das aves. E já não era apenas uma escola que urgia perseverar, mas todas as escolas onde, sob múltiplas formas esboçado, o futuro despontava.


  
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Edição:

N.º 131
Ano 13, Fevereiro 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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