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Gestos simples

Algures, em 10 de Setembro de 2007,

Querida Alice,

Não sei se já te contei a história do beija-flor (os avós passam os dias a repetir recomendações e a contar a mesma história, não é?...). É uma fábula tão curta, que se conta em poucas linhas. Mas é também tão rica de ensinamento, que não cabe num só compêndio. Conta-se que, certo dia, houve um incêndio na floresta ? no tempo em que nasceste, havia mãos criminosas que ateavam fogos destruidores ?  e todos os animais se puseram em fuga. Todos? excepto o beija-flor. Ia e voltava, ia e voltava, trazendo uma gota de água no bico, que deixava cair sobre as labaredas e a terra calcinada. E, quando um dos animais em fuga o interpelou, dizendo ser impossível extinguir o fogo daquele modo, o beija-flor respondeu: ?Eu sei que não são estas gotas que vão apagar o fogo, mas eu faço a minha parte??
Talvez o beija-flor da história tivesse lido um livro de muitos livros, onde está escrito que mais vale acender uma luz do que maldizer a escuridão. Isso não sei. O que sei é que, a par da invasão das negrelas, da sanha das galinholas e dos ataques dos urubus, as gaivotas da escola das aves conheceram a generosidade do beija-flor, a inabalável fé dos colibris, e aprenderam o dom da solidariedade de muitos pardalitos.
Instigado por abutres, cuja vontade era fazer da escola das aves, à semelhança da rainha do sonho de outra Alice, uma fieirinha de cabeças cortadas, o chefe dos pássaros quis ver tudo explicadinho, tintim por tintim. Para isso, enviou emissários, que observaram a escola, lá do alto, ou pousados no telhado. Escabicharam os mais secretos recantos, estiveram atentos ao mais leve chilrear. Partiram para dizer ao chefe dos pássaros tudo o que tinham visto e escutado, e que em nada correspondia ao que as negrelas tinham dito, ao que os abutres tinham escrito e os papagaios tinham repetido. Mesmo assim, o chefe dos pássaros fez-se desentendido? 
Na vida dos pássaros, há momentos em que, perante a infâmia, como face à beleza de certos gestos, nem chorar se consegue. Eram tempos de profanação aqueles de que te venho falando. Mas eram também tempos de um adormecer calmo, na expectativa de manhãs que lavassem toda a infâmia que sobre a escola das aves se abateu. Os pássaros que habitam as trevas assustam pelo poder da maldade que sempre estão prontos a usar. Mas a maldade pouco ou nada pode face ao brilho sereno da verdade.
Estava a escola das aves imersa numa angustiante espera, quando foi acariciada pelo sussurrar das palavras necessárias. Os pardais são pássaros agitados, mas de que se depreende uma benfazeja simplicidade. E foram as palavras singelas de um pardal que chegaram sob a forma de e-mail.
?Caro Zé, tenho seguido com grande preocupação a situação da escola das aves. Está em causa a possibilidade de os pássaros, todos os pássaros, poderem viver livres das grilhetas dos poleiros mais ou menos opressivos e das anilhas que os violentam. Pena é que não faltem por aí velhos urubus à espreita da carne apetitosa e prontos a cantar vitória sobre o que sobrar. Mas fica sabendo que os pássaros da escola das aves não estão sozinhos. Cá fora, há muitos pardais perdidos debaixo de um céu carregado de nuvens escuras, que apenas aguardam um sinal para fazer o que for necessário.
Para todos esses pardalecos, a escola das aves ? onde, um dia, quase todos foram beber um pouco da água mais cristalina que já se viu na floresta da pedagogia ? é um lugar onde regressam, senão fisicamente, espiritualmente, para que seja possível continuar o voo. Sei (porque vi!) que na escola das aves se aprende a voar alto, mesmo muito alto. E o voo começou a ser tão alto, tão alto, que foi observado em paragens longínquas. Até que, certo dia, um grupo de galinholas, que de voadoras tinham pouco e cujas asas apenas serviam para disfarçar a sua própria mediocridade, se lembrou de arrasar a escola das aves. Queriam fazer do cinzento do seu céu o cinzento de todas as vidas. Porém, os pardalitos, que são muito sossegados mas voam em bando, juntaram-se num instante e aguardaram a palavra para agir. Para que o cinzentismo não voltasse. Para que se pudesse pintar os dias dos pequeninos pássaros com as cores da alegria.
Recebe a solidariedade de um pardal que, um dia, poisou na escola das aves. E que ficou mais simples e puro, como tudo o que acontece por aí?
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Querida Alice, no tempo em que nasceste, um pássaro de voluntários exílios disse que o homem mais sábio que havia conhecido não sabia ler nem escrever, mas decifrava os pequenos grandes segredos que a Natureza encerra. Comungava da simplicidade dos pássaros, plantava árvores e tratava-as com desvelo. Um dia, esse homem sábio de simplicidade abraçou, uma por uma, as suas árvores. E, nesse mesmo dia, morreu.
Um abraço estreita a distância entre ritmos pautados no lado esquerdo do peito, ou afaga a mesma árvore que acolhe os pardais, no fim de cada tarde. Ambos são gestos simples, de comunhão com um ritmo que é bem diferente do frenesim que se apossou das cidades dos homens. Abraços e pardais estão em profunda harmonia com um tempo pressentido no vai e vem das marés, e que as horas dos homens não medem. Saibamos ler nos gestos simples uma verdade maior: a certeza das manhãs e dos reencontros.
Como vês, querida Alice, o beija-flor e o pardal são pássaros pequenos, mas dão grandes lições. Como vês, querida Alice, a vida pode ser lida num abraço de despedida como num saltinho de pardal.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 130
Ano 13, Janeiro 2004

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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