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Setembro

Algures, em 9 de Setembro de 2007,

Querida Alice,

Se eu pretendesse escrever o teu diário, poderia imaginar-te dizendo: ?Hoje é o dia 30 de Agosto de 2001. Fiquei sabendo que nasci no exacto dia em que um senhor chamado Louis Armstrong faria cem anos, se ainda andasse entre vivos. Subitamente, um clarão, estranhos sons e movimentos, até que me sinto agarrada pelos pés, cabeça para baixo, de mão em mão, de braço em braço... é isto a que chamam ?nascer?? Passado o sobressalto, envolvem-me numa estranha pele, deitam-me ao lado de um respirar lento e benfazejo, e há uma outra pele que me toca em suavidade. Retomo a calma. Sinto o afago de dedos ternos, bem diferentes dos sobressaltos de há pouco. Depois, uns lábios doces e sons em que pressinto alegria. Depois, uma outra pele mais áspera num toque trémulo e amigo. Depois, é tal qual a ?adoração dos magos?: os meus pais não param de olhar para mim. Devo ser mesmo importante??

Muitos Agostos se passaram já. E muitos Setembros de voltar à escola. Até chegar este Setembro, que será para ti o início da aventura de ir à escola e reaprender.
O Setembro de há cinco anos era ainda um tempo de te contemplar envolvida no decifrar dos segredos deste planeta perdido num mar de estrelas. Era um tempo de estar ao teu lado sem impor presença, porque estar ao lado de alguém é diferente de estar com alguém, e eu só queria reaprender contigo, discretamente. Nesse Setembro de há cinco anos, eu observava as tuas deambulações pela casa, surpreendia-me a tua busca de sentidos, e os singelos significados que encontravas naquilo que para um avô já não tinha mistério. Porém, tinha muito mais sentido a tua virginal consciência da realidade do que as realidades que provocavam a erosão inconsciente deste teu avô, no choque com tanta inconsciência que, naquele longínquo Setembro, se erguia à sua volta.
Eram naturais os teus gestos de raposa cativando um principezinho. Já ouviras a história e conhecias o valor da rosa para esse maravilhoso saltimbanco do espaço. Só não entenderas uma outra história que o teu avô te contara: a do pirilampo e da cobra. Expliquei-te que pirilampo era um bicho que voava, mas não era ave. E que, embora houvesse cobras voadoras, cobras também não eram pássaros. Descrevi a perseguição movida pela cobra ao pirilampo e a perplexidade do insecto, que não fazendo parte da cadeia alimentar da cobra nem lhe tendo causado qualquer dano, perguntava por que razão a cobra o pretendia devorar. ?Porque me incomoda o teu brilho? ? respondeu-lhe a cobra.
Na idade de outros entendimentos, descobrirás a moral da história (como diria um senhor chamado La Fontaine, a cada fábula a sua moral?). Também descobrirás que não é fácil lidar com utopias quando elas são reais. E que a mentira muitas vezes repetida mata a possibilidade da alegria diante da beleza de uma utopia concretizada. A escola das aves tinha resistido à praga que sobre ela se abatera, mas eram ainda visíveis os vestígios de destruição. Nunca as gaivotas pensaram em degredar as aves infectas, mas estas conspiravam em recantos sombrios.
No torpor dos dias sempre iguais de um Setembro sombrio de há cinco anos, os abutres vigiavam o silêncio sinistro de outras aves. O falcão de bico curto e adunco, esquecia a agilidade e praticava a obediência, perseguindo presas que o amo determinava, regressando sempre servil à mão férrea. Os papa-moscas caçavam insectos. A poupa vegetava por entre vinhedos, catando terrenos de cultivo na procura de lagartixas. Oculto pela ramaria, o abelharuco dava caça a abelhas e vespas. A gralha tagarela sobrevivia como o escaravelho colado à bola de excremento. Na ignorância dos dias invulgares, a vida decorria igual, a lama transformava-se numa espécie de céu com nuvens de gozo mole?
Mas crê, Alice, que uma vantagem que a verdade possui é a de, apesar das tentativas de asfixia sofridas, despontar, em tempos futuros, em outros seres inquietos. E que até mesmo os mais dóceis pássaros possuem o dom da indignação, pois não é apenas nos filmes que os corvos se revoltam...
Nesse Setembro de incerteza vivido há cinco anos, desejaria ver o mundo pela candura dos teus olhos. Na passagem do mundo fantástico para o mundo dito real, nem tudo acontece como nos contos de fadas e o mundo que eu via era o da esperança a consumir-se em negros presságios. Mas também é verdade que a esperança mora nos olhares que só conhecem os limites do infinito, cresce nos gestos de quem procura a desimposição de discricionárias imposições.
Nesse já quase esquecido Setembro, os pássaros que acreditavam serem detentores de um poder discricionário sobre outros pássaros, ignoravam o que, muito tempo antes, tinha escrito um rouxinol de nome Aleixo, um pássaro trovador que não precisou de ir à escola para ser poeta e sábio: ?quem prende a água que corre é por si próprio enganado; o ribeirinho não morre, vai correr por outro lado?.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 129
Ano 12, Dezembro 2003

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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