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"Elogio fúnebre do cinema silencioso"

José Gomes Ferreira manteve durante quase toda a sua vida uma ligação próxima com o cinema. Fez não só - coisa que poucas pessoas sabem - tradução e legendagem de filmes durante perto de cinquenta anos (assinava como Álvaro Gomes), tendo ainda sido colaborador - a convite do seu amigo Chianca Garcia - de duas revistas de cinema dos anos 30 do século passado,  a ?Kino? e a ?Imagem?. Alguns destes interessantíssimos textos foram publicados pela Cinemateca Portuguesa. Um deles, dedicado ao aparecimento do cinema sonoro, foi publicado no nº 9 da revista ?Imagem? a 30 de Agosto de 1930 e parece-me ainda hoje suficientemente interessante para ser conhecido.

?Minhas senhoras e meus senhoras :
Nunca nenhum ?fraque? foi tão sincero como o meu! Nunca nenhuma comoção tão verdadeiro como a que sinto neste momento solene em que um cadáver de celulóide vai enterrar.
O cinema silencioso morreu, ficou silencioso de vez- eis a dolorosa verdade. Em vão, amigos fiéis, agarrados ao seu  quase- cadáver,  tentaram salvá-lo. Morreu, apesar de todos os esforços na flor da idade, ao abandono, com poucos espectadores à cabeceira. Morreu em paz, sem uma queixa, silencioso e resignado. Na tela branca apareceu o letreiro FIM DE SESSÃO, e ele desapareceu suavemente, como se tratasse dum intervalo de dez minutos... Estava morto,. Encerraram-no numa caixa de lata e alguns amigos dedicados vieram velar o defunto. Eu faltei. Confesso que fui ingrato. Abandonei-o no último ano de vida, às portas da morte. Esqueci depressa as horas inefáveis de prazer intelectual que lhe devia. Atraiçoei-o. Mas aqui estou, arrependido, correcto, de fraque, cumprindo o meu dever, disposto a fazer-lhe o elogio das suas virtudes.
Fui leviano, mas os homens e o Grande Morto me perdoarão; a minha atitude é explicável e humana. Pois não acham, senhores, que esta arte não pertencia ao nosso tempo? O século XX  é febril, rápido, cheio de ziguezagues, jazz, aviões, barulho. Não me podiam exigir que me conservasse mais tempo fiel a uma arte que tinha feito voto de silêncio, como um frade capucho!
Não pretendo evocar os trinta anos mudos da sua existência. Não mo consente a comoção. Desejo, unicamente, recordar, o seu último ano de 1930. Oh! Como já me parece longínquo. Mal me lembro dos nomes dos filmes. Só certos artistas vivem nítidos e presentes no meu espírito.
Vejo Greta Garbo, com os seus vestidos psicológicos e as suas unhas de gata faminta, exibindo as suas atitudes de manequim, na ?Mulher Misteriosa?, grande êxito sexual no São Luís. Recordo Brigitte Helm, cinquenta e tantos quilos de carne, nervos, perversidade e pescoço, no ?Manolesco? e na ?Mandrágora?, pesadas indigestões de imagens.  Estremeço ao evocar os olhos verdes de Gina Mendès encarnando a figura de Tereza Ranquin . Em geral, abomino as vampes, invenção europeia comercialmente e sem sinceridade pelos americanos. Só imagino Gina Mendès que, em minha opinião, conseguiu ser vampe, sem se ter transformado em boneca literária. Amo essa actriz porque se sacrificou pela sua personagem, até ao ponto de quase aniquilar a sua personalidade.
(...)
Mas já estou a lembrar-me de Jannings, no ?Patriota?, esse genial virtuose da carantonha! Já me arrepio recordando Lon Chaney pintado de branco, no ?Ri, ri palhaço?, e que, não podendo sobreviver ao desaparecimento do seu cinema, morreu também.
Sinto-me atormentado por tristes recordações que eu gostaria de calar neste momento. Mas - pobre de mim!- ainda me recordo de Dolores del Rio na ?Vingança?, de John Guilbert nos ?Cossacos?, e de outras ? maravilhas fatais da nossa idade?.
Não suponham que desejo evocar unicamente os maus filmes , para amesquinhar a memória do grande morto. Eu sei que os seus defeitos são mais culpa dos homens do que seus. Quando ele se atrevia a surgir, belo, sincero, empolgante- os homens pateavam-no, deixavam cair bengalas, de protesto com ferocidade. Uma vez no Tivoli projectou-se a ?Mãe?, filme que parecia ter sido realizado num estúdio de gente que sofria e revelado num laboratório onde, em lugar de produtos químicos, se usaram lágrimas. Pois o público sem coração, pateou com entusiasmo.
Outras obras-primas foram, igualmente, acompanhadas pelas orquestras e pelos bocejos do público: a ?Marcha Nupcial?, de Stroheim, ?Os Novos Senhores? de Feyder, a ?Multidão? de King Vidor. Só meia dúzia de loucos via setes com os olhos toldados de lágrimas, que, ainda é a maneira mais elegante e inteligente de ver cinema. Os outros exigiam filmes áridos e secos como os seus olhos ajuizados. E não retiveram as imagens dos carros cheios de guizos- da ?Aldeia do Pecado?
Não decoraram o plano das três cabeças dos bandidos do ?Clube 73?-genial compasso fotográfico daquela sinfonia de luz inteligente. Não recordaram, em casa, no silêncio da noite, a cena dos dois marinheiros, brincando com o menino, no filme ?Uma Rapariga Em Cada Porto?. Foram ao ?Patriota? para admirarem o solo de caretas de Jannings, mas esqueceram-se de fixar na retina o vulto de Lewis Stone. Não sentiram um arrepio quando viram William Powell assentar-se ao lado do ?gato-pingado? na ?Interferência?. Não gozaram a frescura das searas na ?Rapsódia Húngara?. Não caíram de tontos, embebedados de imagens, quando se projectou ? O Filho do Outro?. E frequentaram o São Luís, durante quinze dias , para ver ?A Outra Verdade?, com aquele ar burguês e fatal de quem se sente obrigado a folhear uma história de guerra, bem encadernada, existente na ante-câmara dum consultório médico.
(...) O cinema silencioso foi um incompreendido, que se viu obrigado a transigir para poder viver. A evocação do último ano da sua existência faz-me sofrer. Vejo-o, corrido, pateado, vaiado. ?Mal com o público para agradar aos críticos; mal com os críticos para agradar ao público...? E então, como derradeiro recurso, ia buscar Greta Garbo, Clara Bow, Bancroft, Ramon Navarro, Buster Keaton e Harold Lloyd, para manter a sua realeza hesitante. Só assim, conseguia vê-los de acordo. O público e os críticos saboreavam, lentamente com os olhos em pecado em gula, as imagens de Clara, e Greta Garbo. Bancroft desabotoava o colarinho e ria com uma humanidade tão aguda, que  chegava a dominar as feras. Ramon Navarro tornava-se do tamanho dos olhos das raparigas. Buster Keaton e Harold faziam rir os tristes e as crianças, com a ingenuidade das facécias de circo, profundamente internacionais por serem profundamente humanas.
E desta maneira, conseguiu o Cinema Silencioso arrastar os seus últimos metros de existência, manter o seu velho prestígio. Silenciosamente arrastar, nas pontas dos pés- ia contentando estes olhos, e depois aqueles, com uma grande bondade, um desejo enorme de agradar, que chegava a comover críticos de bigodinho.
A uns oferecia os ângulos ginásticos da ?Noite de Príncipes?; a outros, as imagens exóticas da ?Tempestade na Ásia?. Os optimistas delicados sorriam e traziam para casa, dentro dos olhos ávidos, a figura de Anny Ondra no ?Viva o Amor!? Os amadores de folhetins viam com curiosidade, romântica, ?Tarakanova?, que René Bohet ajudava a suportar, com os tiros do bombo da sua orquestra magnífica. A geral delirava com Bancroft na ?Rusga?, o homem que falava pela boca da sua pistola. As meninas desmaiavam a ver Jant Gaynor no ?Anjo da Rua?.
O cinema silencioso a todos queria satisfazer. Tinha mil caras e mil sorrisos, como Lon Chaney.
Lutou até ao fim. Depois, com resignação, convencido de que tudo era inútil, preparou-se para morrer, com elegância, nobremente. O pano de veludo correu, tapou o ecrã. As rabecas calaram a surdina última adaptação. E  devagarinho, sem um grito, sem um desespero, desfez-se em sombra, morreu, novo e triste, como Rudolph Valentino...
Minhas senhoras e meus senhores: Paz à sua alma.?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto
Paulo Teixeira de Sousa
Escola Secundária Especializada de Ensino Artístico de Soares dos Reis, Porto

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