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A «abordagem por competências»: revolução ou mais um equívoco dos movimentos reformadores? (III)

?Mudar a avaliação significa provavelmente mudar a escola?
(Perrenoud,1992).

CURIOSAMENTE, É NO CAMPO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUE, ENTRE NÓS, A NOÇÃO DE COMPETÊNCIA TEM VINDO A ADQUIRIR UMA GRANDE CENTRALIDADE, NÃO TENDO PASSADO DE MERAS EXPERIÊNCIAS (E PONTUAIS) AS TENTATIVAS DE A INTRODUZIR EM CONTEXTOS EMPRESARIAIS (Imaginário,1998).

A problemática das competências, como sabemos, emergiu no campo do trabalho, podendo encontrar-se as principais contribuições teóricas sobre a questão em revistas de campos disciplinares tais como a psicologia e a sociologia do trabalho, por um lado, e da gestão e formação profissional, por outro. Só muito recentemente (fins da década de 90), é que assistimos a esta «irresistível ascensão» da noção de competência no campo da educação escolar (Romainville, 1996), ocupando entre nós um lugar de destaque na actual «reorganização curricular» do ensino básico. Curiosamente, é no campo da educação escolar que, entre nós, a noção de competência tem vindo a adquirir uma grande centralidade, não tendo passado de meras experiências (e pontuais) as tentativas de a introduzir em contextos empresariais (Imaginário, 1998). E esta centralidade é devida, em grande medida, à prolixidade de um autor de referência no campo da educação ? Ph. Perrenoud  que parece ter descoberto na noção de competência a chave para a transformação radical da educação escolar.
Se analisarmos algumas das suas produções em língua portuguesa sobre a questão (1999, 2000 e 2001), podemos verificar que a «abordagem por competências» surge como uma dimensão instrumental para a mudança da escola, para romper com a lógica disciplinar instituída, combater o insucesso escolar, promover a igualdade de oportunidades e formar cidadãos autónomos e livres. Tudo isto no quadro de um paradigma construtivista fundado no início do século XX pelo movimento da educação nova e continuado pela pedagogia institucional em França, a partir dos anos 60. Como sabemos, a maioria das reformas curriculares que ocorreram em Portugal após 74, foram buscar a sua inspiração àquelas perspectivas pedagógicas, podendo concluir-se que a única novidade que enforma a actual reorganização curricular bem como as propostas de Perrenoud é a abordagem por competências, concebida simultaneamente como instrumento e como referente teórico.
O campo da educação escolar, apesar da crise de legitimidade que o vem caracterizando há cerca de três décadas, possui um enorme potencial de progressão no sentido do cumprimento do ambicioso conjunto de objectivos que desde cedo o constituíram. Os princípios proclamados por aqueles movimentos e retomados por Perrenoud apontam nessa direcção, nomeadamente as que se referem ao modo de desenvolvimento dos currículos (apostando numa perspectiva transdisciplinar), à articulação entre a educação escolar e os contextos de trabalho mais vastos (que constitui um dos múltiplos trabalhos de Hércules) e ao processo de aprofundamento da escola democrática. Apesar de constituírem desafios centrais na actualidade e aos quais teremos de continuar a buscar energias para lhes dar forma, parece-me que fazer depender essa profunda transformação na forma de conceber e praticar a educação escolar da noção de competência(s) é, não só uma acção redutora, mas fundamentalmente mistificadora, até pelo modo como aquela noção tem vindo a ser construída e recepcionada no mundo das empresas e no campo da gestão há várias décadas. Como refere Wittorski (1998), ?os trabalhos realizados sobre a noção de competência centram-se frequentemente e sobretudo na avaliação das competências com o objectivo de as classificar?, falando-se hoje na necessidade de os indivíduos possuírem «portfólios» de competências (inovação americana dos anos 80), estandardizados, com o objectivo de afirmação individual nos mercados de trabalho (esta questão é central nas publicações da Comissão Europeia sobre a educação).
Parece, pois, estarmos perante pelo menos dois modos distintos e irreconciliáveis de abordar a problemática das competências. Impõe-se o seu questionamento e a necessária separação de águas. Como sabemos, a mudança que ocorreu no campo da avaliação foi meramente administrativa, mantendo a escola tal como se encontrava (ou talvez pior). A noção de competência arrisca-se a ter o mesmo destino, neste caso com consequências bem mais benignas. A aposta terá de ser no conjunto de questões acima referidas. Mas a sua contaminação com a noção de competência não terá como consequência distrair-nos desse objectivo?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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