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Da Educação Física à Educação Desportiva

NÃO SEI DE NINGUÉM QUE, COM TANTA FRONTALIDADE E SIMULTANEAMENTE COM PRUDENTE ATITUDE CRÍTICA, TENHA ESCRITO QUE A DISCIPLINA ESCOLAR DE EDUCAÇÃO FÍSICA (EF) SE ENCONTRA «NUMA PROFUNDA CRISE DE IDENTIDADE E DE CREDIBILIDADE EDUCATIVA E SOCIAL».

O artigo que o Doutor Gustavo Pires escreveu em O Desporto de Madeira (6 a 12 de Junho de 2003) há-de ?fazer história?. Com efeito, não sei de ninguém que, com tanta frontalidade e simultaneamente com prudente atitude crítica, tenha escrito que a disciplina escolar de Educação Física (EF) se encontra ?numa profunda crise de identidade e de credibilidade educativa e social?. Com efeito, ?o desporto tem vindo a assumir-se como o instrumento pedagógico e a própria substância da EF?. E se assim é; e se o discurso não é uma realidade petrificada e inerte, pois que deve transformar-se ao próprio ritmo da transformação do conhecimento e da sociedade ? é evidente que não há EF, mas sim Educação Desportiva (ED). Continuar com a expressão EF será pretender estancar a imparável revolução paradigmática que atravessa actualmente as ciências. Eu sei que há gente na EF (não são muitos, felizmente) que se sente bem no ambiente remansoso de meia dúzia de práticas que se vão perpetuando e definhando, em benefício do seu comodismo, quer físico, quer intelectual. Eu sei que o Gustavo Pires, o André Escórcio e eu mesmo temos de pagar um tributo quase inevitável, exigido em todas as épocas, aos que não afinem pelo diapasão de um corporativismo obsoleto e medíocre. De facto, nós proclamamos que nem cientifica, nem pedagogicamente existe qualquer educação de físicos; que a expressão EF se acha incrustada numa ambiência social onde o estudo desta matéria não é conhecido; que a EF deve morrer o mais rapidamente possível para surgir no seu lugar uma nova área científica que mereça dos ?homens de ciência? credibilidade, respeito e admiração.
Falava eu, há pouco, com um professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra que me perguntava pormenores sobre a minha tese, à cerca da ciência da motricidade humana (CMH). Disse-lhe os caminhos epistemológicos que delineei para chegar a uma teoria que tenho composto com alguma originalidade, embora os limites do meu minguado saber. E que, mesmo assim, já merece teses de doutoramento e mestrado, tanto em Portugal como no estrangeiro. Ele ouviu-me e pouco habituado às estupefacções do senso comum, inquiriu: ?Conhece os currículos dos cursos de Medicina??. E eu sem me esquivar à resposta: ?Conheço muito mal?. E ele: ?Também em Medicina há a disciplina de medicina física que significa um aspecto dos múltiplos olhares em que a Medicina pode ser observada, é uma disciplina ao lado das outras. Por analogia, entendo que a EF não pode representar a totalidade de uma área científica, designadamente uma ciência humana. As pessoas humanas não são apenas físicos?. Tenho consultado febrilmente livros atrás de livros que se ocupam da EF e, ou encontro uma cultura estruturada com certa precipitação ou uma indigência intelectual que aflige. Não ponho em causa a honestidade de quem escreve. Lastimo a vetustez das ideias onde se fundamentam. Uma insaciável curiosidade e menor absentismo eram suficientes para a EF ser contemplada, no museu das frases feitas das palavras-de-ordem e respeitada pela luta admirável de uma classe profissional em prol do seu estatuto, na sociedade.
Conheci no Brasil o alemão Reiner Hildebradt-Stramann, doutor em Desporto e professor titular da Universidade Técnica de Braunschweig, na Alemanha. A Editora UNIJUI (Rio Grande do Sul) traduziu, para português, em 2001, o seu livro Textos Pedagógicos sobre o Ensino da Educação Física. Nele pode ler-se: ?O conceito de esporte como assunto principal do ensino, frequentemente qualificado como conteúdo das aulas de Educação Física, determina, precisamente, de forma indiscutível, o transcorrer dessas aulas? (p.21). Este autor é um, ao lado de muitos, que desiludem os que defendem as aulas de EF, ao jeito tradicional, e presenteiam a nossa sociedade com uma fácil e falsa via de acesso à credulidade ansiosa dos que pretendem um rápido bem-estar e outros ardis para esconder que a prática em questão não é física mas de pessoas em movimento intencional, ou melhor: no movimento intencional do desporto. Os impropriamente chamados professores de educação física são imprescindíveis na escola, no trabalho, na saúde, no lazer, precisamente porque não trabalham físicos, mas a motricidade humana, ou seja, pessoas. Eu volto ao que venho afirmando, já há um bom par de anos: a EF nasceu quando, no estudo do ser humano, matéria e espírito deviam ser resolutamente estremados de acordo com os ditames do racionalismo que então amanhecia.
O facto de o corpo ser apenas físico e nada mais que isso; ser objecto ao lado dos outros objectos ? permitiu a criação de fundamentos insuspeitados para a fisiologia e a patologia, conquanto a influência dos teólogos não deixasse de gravar-se nas dificuldades em considerar a união alma-corpo. Por isso, quando a EF nasce, em finais do séc. XVII era impensável politizar uma aula de EF (eu disse politizar, não disse partidarizar), dado que o seu objectivo era a criação do homem-máquina, do corpo-objecto e não do cidadão e do corpo-sujeito. Ora, o que eu defendo (e não estou só) é que nasçam as aulas de Educação Desportiva, como espaço insubstituível da promoção de uma vida activa e saudável e de uma consciência crítica do Homem, da Sociedade, e da História. Uma aula que trabalha físicos tão-só não é uma aula, é uma alienação.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 125
Ano 12, Julho 2003

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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