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O leilão

O leilão começa às nove da noite. Mas os ponteiros do relógio de pêndulos parecem parados nas nove menos um quarto. Adelaide percorre a sala de estar à procura dos objectos da sua vida. Objectos que, no entanto, nunca foram seus, verdadeiramente. Toca num e noutro com o pano do pó. E vai limpando as lembranças que lhe vêem à memória. A toalha de linho branca bordada pela sua senhora, a que foi estreada no jantar de celebração da formatura do filho mais velho dos senhores, foi posta na mesa da sala. Há tanto tempo que não saía do gavetão! A cristaleira, onde outrora só tinha lugar o serviço de cristal da Boémia oferecido à senhora pelo senhor por altura de um seu aniversário, foi sobrelotada com todos os vidros da casa. Copos, taças, cálices, afundados em terrinas pousadas em pratos e travessas.
Também as paredes estão sobrelotadas de quadros. O curioso é que eles nunca lá estiveram. Mas os filhos da senhora entenderam que, tratando-se de um leilão do recheio de uma casa, poderiam aproveitar para vender também alguns dos seus pertences. E assim, talvez aliviar o fardo dos seus próprios filhos. Adelaide dá uma vista de olhos aos quadros. Não está interessada nas pinturas. Quer, tão-somente, ver se precisam de um paninho.
«Quanto mais coisas estiverem expostas tanto maiores serão as oportunidades de venda!» Foi a mando do herdeiro mais novo que toda aquela atabalhoação surgiu da ordem que durante anos a sua senhora estabelecera na decoração da casa. «E o melhor é não vender peças de colecção separadas!» Adelaide limitou-se a cumprir a vontade do ?menino?. Como sempre fez.
Durante quarenta e nove anos, Adelaide serviu a dona Arminda. Mais tempo serviria não tivesse a senhora morrido fruto da idade avançada.
Toda a vida fora criada em casa alheia. Só que o habituar dos anos fez Adelaide esquecer que de seu apenas tinha o enxoval que a sua falecida mãe lhe fizera. Quis o acaso que Adelaide nunca arranjasse namoro. E as camisas de noite com aplicações de renda e folhinhos permaneceram por estrear. Junto do jogo de lençóis de linho, bordados pela sua própria mão à luz mínima do candeeiro a petróleo para a senhora não dizer que lhe gastava a luz. Adelaide tinha também alguma louça. Presentes da sua senhora que ainda estavam empacotados pois nunca tivera casa sua onde os usar. Objectos verdadeiramente seus que não lhe traziam memórias.
Adelaide crescera de pano na mão. Ora a limpar os móveis ora a limpar o chão. Ajudou a senhora na cozinha, engomou os fatos do senhor e as batas dos meninos. Deu-lhes banho, aturou-lhes o mimo, viu-os formados, casados e pais de filhos. Deixara a aldeia aos 11 anos, seguindo o mesmo destino das duas irmãs mais velhas, e fora servir na cidade. Apenas Joaquim, o irmão mais novo, ficou com os pais para os ajudar nas lides do campo.
Apesar de terem partilhado um começo de vida idêntico as irmãs de Adelaide, já falecidas, escaparam à vida de domésticas. Uma engravidou, ainda solteira, do moço do talho e foi posta na rua pelos patrões. Mas a sorte ditou que o moço fosse honesto. Casaram e tudo acabou bem. A outra apaixonou-se por um empregado que trabalhava na oficina do patrão. Namorou às escondidas enquanto o senhor esvaziava a marmita que ela lhe levava à hora do almoço... E acabou também por se casar.
Joaquim casou com uma moça da aldeia e ainda lá vivia, na casa que pertencera a seus pais. Não tinha filhos e, por isso, prontificou-se a acolher Adelaide. Em troca Joaquim pediu à irmã que olhasse pela esposa e a ajudasse na lida da casa.


  
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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