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Lembrança de PESSOA nos 115 anos do seu nascimento (13.Junho.1888-13.Junho.2003)

É verdade, hoje, lembrei-me de ti, meu caro Pessoa. Há instantes na vida em que um homem se lembra de outro homem, um amigo nos recorda outro amigo, uma criança nos evoca outro mundo de crianças. E tudo se cruza pelos labirintos antigos de infância, nesse mistério de ser quase-quase a imagem fugidia da realidade-ela-própria que se reinventa pelos sinais que chegam de longe. Lembrei-me de ti, na pele, na voz e no sangue do teu irmão visceral que é Álvaro de Campos, engenheiro naval educado na Inglaterra e diplomado em Glasgow ou ainda na memória destes versos de teu primo Ricardo Reis:

Ninguém a outro ama, se não que ama
O que de si há nele, ou é suposto.

E chego a pensar que, se fosses um pouco mais velho e estivesses ainda vivo, poderíamos ir ao ?Martinho da Arcada? tomar um bagacinho, por entre dois dedos de conversa de que tanto gostavas e eu gosto. Ou ainda, se eu tivesse vivido na mesma época, nesses anos 20 de agitadas convulsões e reviravoltas, já depois do fogo cruzado de Orpheu, a que na aparência te mostraste indiferente (e fizeste bem, claro), escrevesse como tu algumas cartas paradoxais e assustadoras aos amigos, brincasse com as tuas descobertas ?paúlicas? ou ?sensacionistas? ou me solidarizasse com a tua inconfundível voz de Poeta descobridor de outros mundos e vidas, perdido nesta Lisboa que pouco te ajudou e não te fez conhecer melhores recordações dos passos e passeios dentro da cidade onde correram as águas do rio e do cais deste Tejo pela ?saudade de pedra? que de ti para sempre ficou. Sei como foste inventor de novas linguagens, como soubeste criar o mundo à tua imagem e semelhança, e de tudo assim projectaste em redor os sinais desse tempo estreito, provinciano e triste. Por aí navegaste em labirintos obscuros cujas sombras interminavelmente se ligam a esse círculo astral que não tem ponta por onde se lhe pegue. Enfim, meu caro Pessoa, nesta cidade luzidia e cheia de gente, o castelo ao alto, nas lutas e canseiras cruzadas e sonhadas pela baixa pombalina por onde andaram os teus passos em horas errantes de Poeta sonhador, entre a ?Brasileira? do Chiado e as ruas da Conceição ou dos Douradores, foi bom reencontrar-te ao virar da esquina da rua da Prata, no rosto calado e alegre de uma miúda feliz no chocolate que devorava em hora de almoço, pequena de cara suja e besuntada, agarrada à saia de sua mãe. E, quase sem disso me aperceber, pela voz que soava dentro de mim, comecei a dizer os teus versos que sei de cor:

Come chocolates, pequena,
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo se não chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudera eu comer chocolates com a mesma vontade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.

Mas a descuidada criança não me ouviu, não quis saber da voz que por dentro me falava, demasiado entretida estava com o chocolate comido à pressa para se não derreter nos dedos gulosos dos seus cinco anos, ?uma
criança feliz?, pensei, ?sobretudo feliz no acto simples de comer um chocolate?. Eu sei.
E de súbito me fez recordar a criança triste que sempre fui, sem chocolates nem confeitaria ao pé da porta, nesse longínquo mistério que permanece nas ruas da minha infância. Mas sei fingir, claro, esqueci o que me ia na alma no instante de me rever nessa pequenita de cara suja pelo chocolate devorado num abrir/fechar de olhos. E, fingindo que a alegria ou a dor dos outros se não compara com a minha (sempre mais dolente e pior), de ti me recordo ainda no começo desta manhã primaveril  em que te evoco:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar e o Sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E sei como sofreste, sorriste, disfarçaste, inventaste um mundo que de perto te fez conhecer bem os segredos e labirintos da cidade: disseste sempre o que te apeteceu dizer, na metafísica dos chocolates, no Esteves da tabacaria, no Chevrolet emprestado pela estrada de Sintra e até nas poucas cartas de amor ridículas. E por entre os dissabores sofridos, na solidão povoada de escárnios e desfeitas ironias,nos passos perdidos desse itinerário em que hoje te redescobrem não como rei e antes príncipe da nossa (triste) Baviera, deixaste ?aviso público? dessa dor de alma que se espelha na quadra que de ti toda a gente repete mesmo quando não entra a tempo nem a propósito:

O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Soubeste como poucos dar a dimensão precisa do sofrimento do poeta, da sua mundividência complexa, da sua multiforme diversidade. Só tu soubeste, como raros poetas, recriar esse mundo que tão próximo ficou dessa tua personalidade difícil de entender, disfarçada como génio nos heterónimos que serviram para ?explicar?(não explicando) as tuas variadas multiplicações pessoais. Nasceste e viveste poeta - poeta-cantor do tempo, do amor, da ironia, da angústia, do desespero,da lucidez, do desassossego, enfim, sempre Poeta. E hoje, meu bom Pessoa, o reino dos teus leitores alarga-se, aumenta em proporções quase desmedidas, por quererem ver reflectida nos teus versos a imagem que neles se espelha da sua própria tristeza, angústia ou alegria. E apesar de muitos serem ainda os textos que se guardam na celebrada arca que parece não ter fundo, onde enfiaste o mundo todo que carregaste nas costas em anos de atropelos e aflições, ainda te desvendas inteiro e grandioso em inovador e despudorado talento pelo sensível mundo da poesia. A tua voz solta-se nos ventos do tempo e em quadrantes longínquos, povoa outras solidões que, em língua diferente da nossa (?a minha pátria é a língua portuguesa?), continuam a entender o mundo fingido e verdadeiro da tua condição de Poeta. Foste e continuas poeta, mesmo depois de tantos anos passos sobre a tua morte física: faz sempre anos que nasceste ou morreste em qualquer ano que passa. E tiveste melhor sorte do que outros companheiros de geração, de quem se fala menos ou mais esquecidos ficaram: Ângelo de Lima, Armando Côrtes-Rodrigues, Alfredo Guisado, António Botto, Mário de Sá-Carneiro ou Almada Negreiros. Mas sempre continuas vivo e muitos se ?reencontram? hoje nas águas subterrâneas e tumultuosas do teu verbo. Não têm conta os herdeiros naturais e colaterais de Álvaro de Campos ou de Ricardo Reis na evocação desses teus heterónimos mais conhecidos. Todos te disputam o nome e a imagem, não há contas a fazer na presença que de ti mesmo ressoa tantos anos depois de teres partido. E, se muitos fragmentos se desvendam da tua jarra partida em mil pedaços, na lembrança do teu exemplo e da tua obra, não há dúvida de que outras vozes se entrecruzam no trajecto e se bifurcam por caminhos que desaguam ainda nas mesmas águas: Jorge de Sena, Adolfo Casais Monteiro, Mário Cesariny, Raul de Carvalho, António Ramos Rosa, Herberto Helder ou Ruy Belo são poetas que, no rasto dos teus passos e nas várias ?cosmogonias? ou ?tautologias? pessoais, se reencontram contigo nos limites cruzados de ser a poesia essa voz comunicante de sonhos, desvarios ou suplícios. Não só pela passagem de testemunho, mas sobretudo pelo saber retomar por outros horizontes de desassossego e sobressalto as linhas essenciais de um inalterável discurso poético. Tudo isso sabemos, claro. Mas o que todavia mal se compreende (e tu desconheces) é esta ?febre? súbita de arvorar o teu nome como credo de uma falsa religião: disputam-te os livros e os versos, utilizam-te cada qual em seu proveito (eu próprio o faço nesta crónica evocativa), guardam os teus livros e papéis como fazem os coleccionadores de borboletas. E no entanto mal te lêem, não deixam espalhar os teus versos por outros voos de compreensão e na razão de apenas haver razão quando se lê, entende e discute o que transparece pela presença da tua fulgurante obra poética.
No fim de contas, reunidos todos os pedaços de outra jarra que mal se partiu ou ainda permanece intacta, continuamos mergulhados nesta faixa ibérica, com oitocentos anos de história e outros tantos de comprimento, mas sem que muito se tivesse alterado desde a tua partida. Olha, ainda hoje pude revisitar os lugares da tua peregrinação diária (como sugeriste no roteiro para-turista-ver-Lisboa) pelas mesas da ?Brasileira? do Chiado ou do ?Martinho?, com outros rostos em redor, tudo numa solenidade disfarçada de quem não anda em busca da pedra filosofal, mas de um lugar ao sol que dê para a gravata nova, a bica ou o brandezinho. E pouco mais, sim, que os tempos continuam bem difíceis. No fundo, relembrando ainda e sempre os teus versos, sei (e tu sabes) como ?perdemos a Índia / e ficamos desempregados?. Ou como pôde cantar o teu bom amigo Carlos Queirós (que hoje muito poucos lêem ou sabem da sua existência):

Português e vivo
é diminutivo.
Só fazemos bem
Torres de Belém.

E, no desencanto que me atropela nesta manhã em que te relembro, na urgência de pagar a conta na farmácia,passo pelo Bairro Alto e desfaço--me de uma 1ª. edição da Mensagem, como fizeste algumas vezes nos teus negócios de que falavas com a Livraria Ferreira - e sempre me ofereceram mais do que os 1500 réis que então te deram pelo do António Nobre. E, na pressa de assim resolver o problema, deixo voar com mágoa esta edição quase rara de Mensagem que minha avó me oferecera há muitos anos. Paciência, meu caro, nada a fazer. Mas posso recordar nesta hora como também os meus amigos ?sempre foram campeões em tudo? e como esta ?saudade de pedra? me avassala no instante de te recordar e saber, pelas espadas cruzadas de certos momentos quase idênticos, como poucas vezes conheci alguém ?que tivesse levado porrada na vida?. Talvez só eu, meu bom Pessoa. 
E aqui te deixo este recado com certa ironia e verdade, por entre a comovida sensação que me domina, derrota e arrasa. Sei (e tu sabes) como continuas príncipe desta nossa povre e infelice Baviera. E com saudades do Douro que mora longe, olho uma vez mais o Tejo, já não há bergantins, faluas ou fragatas na paisagem, os sonhos de marinheiro ficam comigo em terra, na lembrança que de ti sempre guardo. Um recado triste, eu sei, mas é tudo o que me sobra desta manhã cinzenta de Primavera.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 124
Ano 12, Junho 2003

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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