Página  >  Edições  >  N.º 123  >  História com final feliz

História com final feliz

Carregava consigo alguns sacos plásticos, a sua bagagem na viagem que diariamente o levava a caminhar pelas ruas do Porto. A rotina mandava que de manhã percorresse a zona da rotunda da Boavista e que de tarde passeasse pela Baixa. A elegância do seu mais de um metro e oitenta de altura quase encobria a velhice das suas roupas. Uns óculos de meia-lua pousados na ponta do nariz deixavam à vista os seus olhos azuis cansados. Tinha 59 anos de idade, mas poucos lhe dariam menos de 70. F. era vendedor da revista ?Cais?. A revista dos sem abrigo.
Vivia num quartinho, dizia a quem lhe perguntasse. Em que rua? Não respondia. Talvez o quarto ficasse num vão de escadas? Na hora do almoço dirigia-se ao centro comercial mais próximo para ler o jornal. Ás vezes os dedos amarelados lá se viam a segurar uma sandes de supermercado que acompanhava com um café. Mas a relutância com que os empregados do piso da restauração o serviam não o entristecia, irritava-o! O dinheiro suficiente para simplesmente pagar todo o pouco que pedia não mereceria respeito? Um homem, só porque veste mal, não pode levar à caixa do supermercado apenas uma sandes sem ser olhado. Mas uma vendedora de loja de roupa, anoréctica, pode comprar apenas um iogurte sem que isso suscite qualquer curiosidade.
Eram estes os pensamentos que ocupavam a cabeça de F. sempre que almoçava numa das mesas do centro comercial. Um dia, alguém que também almoçava sozinho decidiu pedir licença para se sentar à sua mesa. Estupefacto com a situação o vendedor lá tirou os sacos plásticos de cima da cadeira e com alguma insatisfação pousou-os no chão. O outro agradeceu o gesto e sentou-se. Passaram-se horas de conversa até que os dois se levantassem.
Em tempos de mais fortuna, F. vivera na África do Sul e fora um construtor relativamente bem sucedido. Uma mulher deitara a sua vida a perder. As cambalhotas do destino fizeram o resto. Mas o passado não era assunto que lhe agradasse. Francisco gostava mais de falar sobre a especulação imobiliária (uma barbaridade!). Não lhe eram indiferentes as facilidades na obtenção do crédito à habitação. Nem os novos materiais de construção. Francisco era ainda um homem de sonhos. Ainda que de pouca esperança. Se um dia viesse a ter, não por milagre pois não acreditava neles, mas se um dia viesse a ter mais dinheiro (teria de ser mesmo muito mais) abriria um restaurante. Mas um de boa comida?
A presença do outro na vida de F. tornou-se um hábito. Viam-se pelas ruas, no centro comercial? Uma noite encontraram-se no Coliseu à saída de um espectáculo. F. não era o único vendedor da Cais no local. Mas insistia em não usar o seu colete-de-trabalho amarelo choque como todos faziam. E enquanto os colegas tentavam vender revistas à assistência em debandada, F., vestindo o seu Kispo verde roto do costume, permanecia encostado a uma coluna com as revistas expostas nas mãos. Não vendia nem mais nem menos que os outros. Mas conhecia melhor o produto. Tanto que ao ver que um certo número continha fotografias dos monumentos pitorescos de um tal de Gaudi logo percebeu que aquilo devia interessar a um público ?mais erudito?. E assim, decidira ir vender a revista aos transeuntes da Foz.
Alguns meses depois do almoço em que se conheceram, F. deixara de ser visto a deambular pelas ruas. O que preocupara bastante o outro. Um dia enquanto comprava a ?Cais? a um outro vendedor este reconheceu-o como sendo o amigo de F. e então contou-lhe o porquê do seu desaparecimento.
Ao que parece a mulher que deitara a vida de F. a perder estava ?bem de vida? e morava em Inglaterra com os seus três filhos. Filhos que F. não via há 14 anos mas que um dia se lembraram de procurar o pai. O caminho que percorreram fora difícil e não envolvera nenhum programa inglês género ?ponto de encontro?. O certo é que F. partira com os filhos, também eles ?bem de vida? para Inglaterra. Tudo indica que a história teve um final feliz.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 123
Ano 12, Maio 2003

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo